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e jdact
«(…) Pousou o papel
em cima da secretária e entrelaçou os dedos uns nos outros, num gesto de
cogitação. Matutava o passo seguinte. Essa autorização terá de passar,
obrigatoriamente, pelo Santo Padre. Com… pre… endo per… feitamente. O pé de John
tornou a bater no chão num ritmo frenético que só os seus nervos conheciam. A
mão percutia no braço da cadeira. Caso seja autorizado, prosseguiu o piemontês,
terá de assinar um acordo de confidencialidade sobre tudo aquilo que vier a ver
e a ouvir. Tenha em consideração que não estou, de maneira alguma, a garantir
uma resposta positiva do Santo Padre. John recusou aquela condição. O seu
trabalho visava a publicação e não podia pactuar com acordos de
confidencialidade. Aquela história estava a esgotar-lhe a paciência. Mais valia
recusarem o pedido de uma vez, em lugar de imporem condições impossíveis e
fazê-lo perder tempo. Tarcísio manteve uma expressão pensativa. Avanços,
recuos, passos pequenos mas firmes, tudo na Igreja requeria muita ponderação. Falarei
com o Santo Padre. Terá a nossa resposta amanhã. John levantou-se da cadeira,
fez um aceno em jeito de cumprimento com a cabeça e avançou para a porta. Tarcísio
manteve-se sentado. Não esqueça, doutor Scott, relembrou o piemontês. Este encontro
não aconteceu.
Con… conseguirei vi… viver com
isso, Emi… Eminência. Bom dia. Tarcísio assistiu à saída do jornalista
americano e pegou no telefone. Acredito que consiga viver com isso, doutor
Scott. Mas tenho muitas dúvidas que o deixem, murmurou para si mesmo quando alguém
atendeu. Chamem-me o intendente Comte.
Para o Francês o segredo era a
respiração. Encher os pulmões de ar e guardá-lo durante o tempo necessário para
não interferir com o mecanismo. Havia outros factores a ter em conta, claro, mas
a quantidade de ar que se inalava e a escolha do momento certo para o fazer era
o mais importante. Outros diriam que o factor crucial era a distância, ou as
condições atmosféricas ou, ainda, o mecanismo que se usava para o efeito, o
foco do anel da objectiva ou o ajuste de paralaxe. Estavam errados,
completamente errados e, por isso, tinham morrido quase todos, e os que ainda
não haviam entregado a alma ao Criador, fá-lo-iam antes dele. No ramo de
trabalho do Francês, não havia margem para erro. Era matar ou morrer,
literalmente. Para ele, aqueles que não sabiam viver deviam ter o mérito de
morrer e o homicídio era a forma mais extrema de censura. O Francês
considerava-se isso mesmo, um censor. O pior de tudo era a espera. Eram muitas
horas à espera. Já devia estar habituado. Afinal, passava mais tempo à espera
do que a contemplar o fruto do seu trabalho. Na verdade, o regozijo da missão
cumprida não durava mais que uns instantes, uns simples microssegundos,
praticamente o clímax de um orgasmo. Os dinheiros eram transferidos para a sua
conta especial e passava à espera seguinte, entregue ao seu vício. Mais horas,
dias, semanas, vigilante, silencioso, cauteloso, até ao próximo trabalho. Poder-se-ia
cognominar de profissional da espera mas, apesar da imensa experiência, nunca
se habituara.
Preferia Londres, Madrid, Roma,
Sardenha ou qualquer outra ilha mediterrânica. Nunca Paris, Marselha ou mesmo
Mónaco. Côte d’Azur estava completamente fora de questão. Avaliava muito bem os
seus alvos antes de atacar. Demorava o tempo que fosse preciso. Os seus parcos
clientes conheciam o seu modus operandi e
não se queixavam. O importante era um trabalho bem feito e esse, o Francês,
executava-o como ninguém. Estava em Roma há três dias e aproveitara para
passear pela cidade. O frio era um pormenor de somenos importância numa cidade
tão civilizacional. Alugara um Mazda 3, nada vistoso, perfeitamente comum. A
morada fora facultada pelo cliente e fez questão de realizar uma ligeira
inspecção visual logo no primeiro dia. Nada de muito invasivo. De máquina
fotográfica encostada ao peito, a alça suspensa pelo pescoço, visitou o local e
ficou maravilhado com os frescos, o mármore, as gárgulas… A rua era comprida,
com prédios residenciais, edifícios públicos e hotéis de ambos os lados. Muito
comércio, com ofertas variadas para saciar o corpo, o estômago e os olhos.
Várias lojas de artigos religiosos, como não podia deixar de ser, com as
montras pejadas de santos, porta-chaves, postais, bandeiras, lenços, pratos, chávenas,
não esquecendo as réplicas em vários tamanhos e materiais dos principais
monumentos romanos e vaticanos, entre outras bugigangas carimbadas, na sua
maioria, com o rosto de Bento XVI e também de João Paulo II. As esplanadas
importunavam os passeios, ora estreitos, ora largos, sem regra, à boa maneira
romana». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto
Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
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