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Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) Shimon deu mais um passo em
direcção à janela do quarto de Marian que, coincidência, ficava de frente para
o seu, separado por um muro que lhe dava pela anca. Assim que chegou à janela
deparou-se com a cortina fechada. Raios. Assim não veria nada. Havia luz no
interior, mas a cortina era opaca e não deixava ver nada. Virou a esquina das
traseiras e avançou devagar. O sol escapulira-se para outras paragens. Já era
noite cerrada. O coração acelerava-lhe no peito. Já não tinha idade para estas
coisas. Ouviu um ruído abafado. Parecia alguém a arfar... E um estalo. O arfar
podia ser seu, mas o estalo não. Deu meia volta à procura da origem do ruído e
deu por si, novamente, na janela do quarto de Marian. As cortinas escondiam o
interior, mas deixavam sair um pálido reflexo de luz nas extremidades. Não se
viam sombras. Ouvia nitidamente o que se passava no interior do quarto. Alguém
respirava muito depressa. Novo estalo. Não temos a noite toda, miúdo, ameaçou
uma voz grossa, masculina.
Já disse. Não sei de que estão a
falar. Enganaram-se na pessoa. Esta voz chorava. Deixem-me ir embora, por
favor. Novo estalo com muita força, segundo a avaliação auditiva de Shimon. Arrastar
de cadeiras e outros sons ininteligíveis. Não vou ser tão benevolente da
próxima vez, ameaçou a mesma voz. Faz o que ele diz, miúdo. Isto não precisa de
demorar muito tempo, aconselhou outra voz, mais cordial, ou assim parecia. Eu
não sei nada. Vocês enganaram-se na pessoa, repetiu a voz lacrimosa. O teu nome
é Ben Isaac Júnior?, interrogou o dono da voz mais amistosa. Filho de Ben
Isaac? A voz chorosa não respondeu. Ouviu-se uma pancada. Talvez na cabeça. Não
ouviste? Responde. Foi a vez da primeira voz entrar novamente em cena. Sou,
respondeu Ben Isaac Júnior a medo. Liguem para o meu pai. Ele paga o que vocês
pedirem. A aflição era notória. A voz amistosa começou a rir-se.
Isto não se trata de dinheiro.
Ninguém está à procura de um resgate. Não?, perguntou Ben. Estava completamente
desorientado. Não, confirmou a voz amistosa. Mas queremos algo, obviamente. E
tu vais ajudar-nos a obtê-lo, Ben. Estamos entendidos? Shimon estava atónito,
colado ao vidro da janela do quarto de Marian. Tinha de ir a casa ligar para a
polícia. Alguém raptara Ben Isaac Júnior, quem quer que ele fosse. Tinha voz de
catraio, filho de Ben Isaac pai que devia ter algo importante para mafiosos
deste calibre. Por que haviam escolhido a casa de Marian, esse era outro mistério.
Tudo a seu tempo. A polícia primeiro.
Dirigiu-se para a rua, ligeiro, a
situação pedia presteza. Tão ligeiro quanto a idade e as forças que Javé lhe
dera permitiam. Havia vidas humanas em risco. Quando a vizinhança soubesse
disto ia ser um falatório. Shimon passou a janela da sala e... Quando tornou a
acordar estava preso a uma cadeira naquele que fora o quarto de Marian e uma
enorme dor latejante na nuca. Ao seu lado estava Ben Isaac Júnior que babava
sangue e cuja cabeça pendia sobre o peito. Parecia adormecido. Dois homens
miravam Shimon. Quem é você?, perguntou o da voz amistosa, notoriamente o líder
do grupo. Era também o mais baixo. Eu?, proferiu Shimon a medo. A dor na parte
de trás da cabeça não o deixava pensar. Sim, tu. Não ouviste?
Reconhecera aquela voz. Era o
mais bruto. Eu... Eu... Sou o vizinho da casa ao lado. Que haveria de dizer se
não a verdade? O da voz amistosa sorriu e aproximou-se dele, olhando-o nos
olhos. Não. Sabes o que tu és?, perguntou sarcasticamente enquanto encostava um
revólver à testa de Shimon que fechou os olhos e comprimiu os lábios em pânico,
um arrepio frio a percorrer-lhe a espinha... O último. Um dano colateral.
A
intimação chegou à residência há 100 dias, mas Hans Schmidt já contava com ela
há muito. A congregação cumpria, escrupulosamente, todos os preceitos burocráticos
sem falhas, sem atrasos, sem fraquezas». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
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