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«Numa noite de Outono de 1916, numa
das propriedades da nobre família Czartoryski, nos arredores de Cracóvia, o
conde Antoni Czartoryski assassinou a sua amante, uma jovem baronesa. Em
seguida, apontou a pistola para si próprio. Ao morrer, Czartoryski deixou a sua
esposa, a condessa Valeska, e uma filha de 2 anos chamada Andzelika. Catorze
anos depois, a condessa Valeska hospedou no seu palácio em Cracóvia um sobrinho
da família, que trazia consigo um amigo do internato em Varsóvia para que passassem
parte das férias de Verão. O amigo era um jovem barão chamado Piotr Droutskoy.
Na época, nem a condessa Valeska nem o seu sobrinho sabiam que era irmão da
amante de Antoni Czartoryski. A filha da condessa, Andzelika, então com 16
anos, manteve um romance secreto com Droutskoy e, como consequência,
engravidou. Quando a identidade de Droutskoy foi descoberta, a condessa, tendo
suportado o escárnio e a vergonha resultantes das traições do seu marido, jurou
que não reconheceria como sua neta nenhuma criança com o sangue daquela, segundo
ela, infame família. Andzelika, convencida de que se apaixonara perdidamente
por Droutskoy, e de que ele correspondia, recusou-se a interromper a gravidez.
Não querendo contrariar o delicado estado psicológico da sua filha naquele
momento, a condessa Valeska pôs-se, então, a formular planos para
posteriormente enviar a criança em segredo para um outro lugar, de uma vez por
todas.
Quando o bebé de Andzelika, uma
menina nascida com um grave problema no coração, tinha 5 meses, a condessa
levou-a até um convento católico romano de uma área rural próxima à cidade de
Montpellier, no sudoeste da França. Com uma grande soma de dinheiro abrindo-lhe
o caminho, ali ela deixou a criança para que fosse criada sob a proteção da cúria
local. Desde o nascimento da bebé, e até mesmo algum tempo antes, a condessa
Valeska recorrera a extravagantes mecanismos para apagar os registos da existência
da criança. Mesmo estando convencida da necessidade da sua missão, ela sofria
ao cumpri-la.
Montpellier. 1931-39
Velhos
plátanos se debruçam galho a galho sobre a ampla avenida, e, sob os guardasóis
das amareladas folhas de Setembro, um grande e negro Packard desliza. Luzes pontilhadas,
em tons cor-de-rosa e bronze, caem aqui e ali sobre três passageiros. Duas mulheres
e um homem, fúnebres no seu silêncio. Uma delas traz nos braços um bebé. Um
fiozinho de luz alcança o rosto da criança, fazendo dos seus olhos gemas negras
rajadas de azul. A luz não a perturba, não a faz fechar os olhos ou desviá-los;
a criança mantém o olhar tranquilo e pensativo, dirigindo-o directamente à
mulher à sua frente, sentada no banco cinza acolchoado com a cabeça virada para
a janela. Taciturno e indiferente, um chofer de uniforme negro dirige mais
devagar do que deveria. O único som que se escuta é o pft, pft, pft dos pneus
percorrendo o asfalto. Ela bem que podia cobrir a criatura. Por que tirou a sua
touca? Por que desenrolou a manta quando estamos tão perto do convento? Devemos
estar chegando. Será que devo perguntar novamente a Jean-Pierre quanto falta? E
quanto falta? Meu pescoço dói por ter passado todas essas horas com a cabeça
virada para não ter que ver a criatura. Já não posso deixar de notar o quanto
cresceu. Nunca olhei direito para ela desde a noite em que nasceu. Onde eu
estava com a cabeça naquele momento para pedir que a enfermeira a trouxesse até
mim? Eu proibira Andzelika de vê-la, e, no entanto, eu mesma quis fazê-lo. Foi
como ver Andzelika pela primeira vez. Estendi o braço para pegá-la assim como
fizera para receber minha filha. Meus braços a desejavam como se ela fosse minha.
Ela é minha. Devo pensar nela desse modo. Ela é minha, e fui eu que decidi não ficar
com ela. Andzelika tem 17 anos. Uma menina imatura de 17 anos, que lamenta perder
aquele rapaz e não se importa nada com a criança. O seu instinto maternal está amortecido,
como se ela a tivesse gerado e carregado no ventre apenas por ele. Um presente
duvidoso para aquele que fugiu tão depressa e para tão longe dela. Astuto». In
Marlena de Blasi, Amandine,
2010, Editora Record, 2014, ISBN 978-850-140-017-8.
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