Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) A menina sorria
maliciosamente. Os olhos de Germán pousaram nos meus, escuros e impenetráveis.
Remexi no bolso e estendi o relógio para ele, esperando que a qualquer momento
aquele homem começasse a berrar e ameaçasse chamar a polícia, a guarda civil ou
o tribunal tutelar da infância e juventude. Acredito em você, disse ele delicadamente,
aceitando o relógio e sentando-se à mesa connosco. A sua voz era suave, quase inaudível.
Sua filha começou a arrumar um prato para ele com dois croissants e uma xícara
de café com leite igual à minha. Enquanto fazia isso, beijou-o na testa e
Germán abraçou-a. Fiquei olhando os dois na contraluz daquela claridade que
penetrava pelas janelas. O rosto de Germán, que imaginei como um ogro, tornou-se
delicado, quase doentio. Era alto e extremamente magro. Sorriu com amabilidade enquanto
levava a xícara aos lábios e, por um instante, notei que entre pai e filha
circulava uma corrente de afecto que ia muito além das palavras e dos gestos.
Um vínculo de silêncio e olhares unia os dois nas sombras daquela casa, no
final de uma rua esquecida, onde viviam afastados do mundo, um cuidando do
outro.
Germán terminou a sua refeição e agradeceu
gentilmente por eu ter-me dado ao trabalho de ir devolver o seu relógio. Tanta amabilidade
fez com que me sentisse ainda mais culpado. Bem, Óscar, disse com voz cansada,
foi um prazer conhecê-lo. Espero revê-lo por aqui outras vezes, quando quiser nos
dar o prazer de uma visita. Não entendia porque insistia em me tratar com
cerimónia. Havia algo naquele homem que lembrava outra época, um tempo em que
aquela cabeleira grisalha brilhava e aquele casarão era um palácio no meio do
caminho entre Sarriá e o céu. Apertou a minha mão e despediu-se, desaparecendo
naquele labirinto insondável. Fiquei olhando enquanto ele se afastava, mancando
levemente pelo corredor. A sua filha o observava tentando ocultar o véu de
tristeza que encobria o seu olhar.
Germán não está muito bem de saúde,
murmurou. Ele se cansa com facilidade. Mas desmanchou aquele clima melancólico
logo em seguida. Gostaria de comer mais alguma coisa? Está ficando tarde, disse
eu, lutando contra a tentação de aceitar qualquer desculpa para prolongar a minha
permanência na sua companhia. Creio que é melhor eu ir embora... Ela aceitou a minha
decisão e me acompanhou até ao jardim. A luz da manhã tinha espalhado a névoa.
O início do Outono tingia as árvores de cobre. Caminhámos até à grade da
entrada; Kafka ronronava ao sol. Ao chegar ao portão, a menina ficou no
interior da propriedade e me deu passagem. Ficámos nos olhando em silêncio.
Ofereceu a mão e eu a apertei. Senti o seu pulso sob a pele aveludada. Obrigado
por tudo, disse. E desculpe... Não tem importância.
Dei de ombros. Bem... Saí
caminhando rua abaixo, sentindo que a magia daquela casa se desprendia de mim a
cada passo que dava. De repente, a sua voz soou às minhas costas. Oscar! Virei.
Ela continuava lá, atrás da grade, com Kafka deitado a seus pés. Por que entrou
na nossa casa na outra noite? Olhei ao redor como se esperasse encontrar a
resposta escrita no chão. Não sei, admiti finalmente. O mistério, creio... A
menina sorriu enigmaticamente. Você gosta de mistérios? Fiz que sim. Acho que
se me tivesse perguntado se gostava de arsénico, minha resposta seria a mesma. Tem
alguma coisa para fazer amanhã? Neguei, igualmente mudo. Se tinha alguma coisa,
inventaria uma desculpa. Como ladrão, eu não valia um centavo, mas como mentiroso
devo confessar que sempre fui um artista. Então espero você aqui, às nove, disse
ela, perdendo-se entre as sombras do jardim. Espere! O meu grito a deteve. Você
não me disse como se chama... Marina... Até amanhã». In Carlos Ruiz Zafón, Marina,
1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1
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