domingo, 10 de novembro de 2019

O Prisioneiro da Torre Velha. Quare? Fernando Campos. «A minha paisagem interior não se casa com toda esta alegria espontânea da natureza e das gentes. Não será de estranhar que o meu pendor me leve a calar tamanha maravilha»

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O Naufrágio
«(…)Forte de Monserrate, São Salvador da Baía, cinco de Fevereiro de mil seiscentos e cinquenta e sete. São dadas nove. Na mudez desta varanda a sombra e o sofrimento. Morre com o dia o vento, o céu estende a garra dos últimos laivos cor de púrpura e a noite espreguiça-se como mulher com cio. Súbito, em festa, fere a quietação e endoidece o batuque e a dança lasciva desta gente negra que, entre sapateados e palmas, saracoteia as ancas e ondula o baixo-ventre. Matéria medíocre para o molde sublime de um soneto? Só poderia dar em mera catorzada, mas não faltaria quem a apreciasse. Para asno a palha é canja de galinha, perdoe-me a gente honrada. Despertam-se-me os sentidos, acirram-se-me os desejos. Mulatchinha visquenta meu ai-me-acuda dengosa, não querzinho mi deixá abafar nos teus braço minhas dor?... Minha Nossa! Cadê seu tino, moço? Tira a mão. E a tua namorada, a menininha da casa grande dos Cavalcanti?... Meneia para mim teu corpo, mulatinha, ondula teus bracinhos, estremece endiabrada tua bunda, teu sexo, ao acento da batucada, catrapã, catrapã, catrapã...
Assim se entrechocam no meu vário sentimento a dor e a ironia e os apetites da carne mortificada. Nesta cidade, são as casas rodeadas de pomares coloridos e perfumados, de tamareiras, laranjeiras, limoeiros, figueiras-de-adão, romãzeiras, bananeiras, de fazer crescer água na boca. Como haste de mulatinha, gingam leves à brisa mole os coqueirais, respiram lentos leques de palmeirais. Cruza-se nas ruas a confusão de raças, índios de Itaparica, do Recôncavo, tupinambás, negros da Angola, brancos. Misturam-se as sotainas dos frades, o preto, o castanho, o alvo, de jesuítas, beneditinos, carmelitas, observantes, com o grito das saias e blusas garridas das baianas. Calados a tais desoras os moinhos do açúcar, o suor do tabaco e do algodão, o burburinho dos mercadores. Beleza de ilhotas ensonadas à entrada do golfo, vegetação farta de palmares, pastagens gulosas de bois, cavalos, porcos.
A minha paisagem interior não se casa com toda esta alegria espontânea da natureza e das gentes. Não será de estranhar que o meu pendor me leve a calar tamanha maravilha. Escrevo de outro mundo, melhor, quase do outro mundo, que morto está quem como eu, no desterro, tem entre si e a pátria os imensos mares que dividem América da Europa, os silêncios dos anos, a orfandade de família, de amigos, de liberdade, de justiça. Prefazem-se hoje trinta e dois anos. Estomagado com a vida, tinha-me alistado na Companhia dos Aventureiros, como soldado de infantaria, e embarcado em Lisboa na armada encarregada de defender a nossa costa e sair a esperar as naus, que, pelo começo do Outono, de ordinário demandam a altura de Lisboa, vindas do Brasil e da Índia. No ar a ameaça de ataque iminente de piratas, os mares encapelados de corsários ingleses, mouros e turcos, franceses e holandeses. Andava eu nos dezassete anos e a alma tinha-a despedaçada, naquele Setembro de seiscentos e vinte e seis. E, a reavivar-me a dilaceração, ao chegar à ribeira de Lisboa, para me embarcar na capitana, encontrei-me com o tio de Branca de Vilhena. Não, não aquele que ia casar-se com ela. Este era outro e meu amigo. António Gonçalves Câmara também vinha a embarcar-se. Se me a alma sangrava, mais dolorosas, com este encontro, me pungiram as lembranças da felicidade perdida...
Priminho, diz-me, tão novo te entregas às incertezas do mar? Tio-avô de Branca e meu primo em já nem sei que grau, era um homem robusto e experimentado oficial da nossa armada. Senhor meu primo..., ia eu a responder, interdito pelas magoadas recordações. Deve ter entendido o que me ia na alma, que atalhou: eu sei, eu sei..., e, abraçando-me fortemente: boa viagem. Boa viagem, murmurei, mal suspeitando que, subindo eu à capitana e vendo-o a ele embarcar-se no galeão São Joseph, era aquela a derradeira despedida». In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN 972-290-669-0.

Cortesia de Difel/JDACT