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O
Congo
«(…) Desde então, Roger raramente
viu o pai e nunca mais o ouviu voltar a contar aquelas histórias da Índia e do
Afeganistão. O capitão Roger Casement morreu de tuberculose em 1876, três anos
depois da esposa. Roger acabava de fazer doze anos. Na Escola Diocesana de
Ballymena, onde esteve três anos, foi um estudante distraído, que tirava notas
regulares, excepto a Latim, Francês e História Antiga, disciplinas em que se
destacou. Escrevia poesia, parecia sempre metido consigo mesmo e devorava
livros de viagens pela África e pelo Extremo Oriente. Praticava desporto,
sobretudo natação. Aos fins de semana ia ao Castelo de Galgorm, dos Young, para
onde um colega da turma o convidava. Mas Roger passava ainda mais tempo com
Rose Maud Young, bela, culta e escritora, que percorria as aldeias de
pescadores e camponeses do Antrim, recolhendo poemas, lendas e canções em gaélico.
Da sua boca ouviu pela primeira vez os épicos conflitos da mitologia irlandesa.
O castelo, de pedras negras, torreões, escudos, lareiras e uma fachada
catedralesca tinha sido construído no século XVII por Alexander Colville, um teólogo
de cara maldisposta, segundo o seu retrato do vestíbulo, que, dizia-se em
Ballymena, tinha feito um pacto com o Diabo e o seu fantasma deambulava pelo
lugar. Tremendo, nalgumas noites de luar, Roger atreveu-se a procurá-lo pelos passadiços
e aposentos vazios, mas nunca o encontrou.
Só muitos anos mais tarde
aprenderia a sentir-se confortável em Magherintemple House, o solar dos
Casement, que antes se tinha chamado Churchfield e fora uma reitoria da paróquia
anglicana de Culfeightrin. Porque nos seis anos que ali viveu, entre os nove e
os quinze anos, com o tio-avô John e a tia-avó Charlotte, e restantes parentes
paternos, sempre se sentiu um pouco estranho naquela imponente mansão de pedras
cinzentas, de três andares, altos tectos lisos, muros cobertos de hera, telhados
de falso gótico e cortinados que pareciam ocultar fantasmas. Os vastos
aposentos, os longos corredores e as escadas com gastos corrimãos de madeira e
degraus que gemiam aumentavam a sua solidão. Em compensação, tinha prazer ao ar
livre, entre os robustos olmos, sicómoros e pessegueiros que resistiam aos
ventos ciclónicos e as suaves colinas com vacas e ovelhas das quais se avistava
a localidade de Ballycastle, o mar, os escolhos que investiam contra a ilha de
Rathlin e, nos dias claros, a esbatida silhueta da Escócia. Ia com frequência às
aldeias vizinhas de Cushendum e Cushendall que pareciam o cenário de antigas
lendas irlandesas, e aos nove glens da Irlanda do Norte, aqueles estreitos
vales cercados de colinas e ladeiras rochosas em cujos cumes as águias traçavam
círculos, espectáculo que o fazia sentir-se corajoso e exaltado. A sua diversão
preferida eram as excursões por aquela terra áspera, de camponeses tão velhos
como a paisagem, alguns dos quais falavam entre eles o irlandês antigo, acerca
do qual o seu tio-avô John e os amigos faziam às vezes cruéis chacotas. Nem
Charles nem Tom partilhavam o seu entusiasmo pela vida ao ar livre, nem tiravam
prazer das caminhadas pelos campos ou a escalar as lombas escarpadas do Antrim;
Nina, pelo contrário, e por isso mesmo, apesar de ser oito anos mais velha do
que ele, foi a sua preferida e com quem sempre se daria melhor. Com ela fez várias
excursões até à baía de Murlough, eriçada de rochas negras e com a sua
praiazinha pedregosa, junto do Glenshesk, cuja recordação o acompanharia toda a
vida e à qual sempre se referiria, nas suas cartas à família, como aquele recanto
do Paraíso.
Mas ainda mais que dos passeios
pelo campo, Roger gostava das férias de Verão. Passava-as em Liverpool, junto
da tia Grace, irmã da sua mãe, em cuja casa se sentia querido e acolhido: pela
tia Grace, claro, mas também pelo seu esposo, o tio Edward Bannister, que tinha
corrido muito mundo e fazia viagens de negócios a África. Trabalhava para a
companhia de navegação Elder Dempster Line, que transportava carga e
passageiros entre a Grã-Bretanha e a África Ocidental. Os filhos da tia Grace e
do tio Edward, os seus primos, foram melhores companheiros de brincadeira de
Roger do que os seus próprios irmãos, sobretudo a sua prima Gertrude Bannister,
Gee, com a qual, desde muito pequeno, teve uma proximidade que nunca foi
manchada por um só desgosto. Eram tão unidos que uma vez Nina brincou com eles:
vocês ainda vão acabar por casar. Gee riu-se, mas Roger corou até à ponta dos
cabelos. Não se atrevia a erguer o olhar e balbuciava: não, não, porque é que dizes
essa palermice? Quando estava em Liverpool, junto dos primos, Roger vencia por
vezes a sua timidez e fazia perguntas ao tio Edward sobre África, um continente
cuja simples referência lhe enchia a cabeça de florestas, feras, aventuras e
homens intrépidos. Graças ao tio Edward Bannister ouviu falar pela primeira vez
do doutor David Livingstone, o médico e evangelista escocês que andava há anos
a explorar o continente africano, percorrendo rios como o Zambeze e o Chire, baptizando
montanhas, paragens desconhecidas e levando o cristianismo às tribos de
selvagens». In Mario Vargas Llosa, O Sonho do Delta, 2010, Editora Quetzal, Lisboa,
2010, ISBN 978-972-564-919-0.
Cortesia
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