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«(…) Nos dias de feira, os Proprietários que saem de suas casas durante
um ou dois dias para vir à cidade realizar os seus negócios, realizam também
outros negócios durante a noite, aproveitando para se libertarem de longos
jejuns, mesmo os casados, porque as mulheres legítimas acabam por perder o
apetite do sexo, e afastam-se deles, mudando até para outros quartos nos fundos
das casas, como se as suas barrigas se fechassem depois de terem dado os filhos
que tinham de dar e os cuidados domésticos as obrigassem a pôr de lado a pose
feminina que provoca o desejo, além de que os próprios maridos pouco se
importavam com isso, preferindo recorrer ao plano de fora, o Senhor não era
excepção a esse ritual, conhecendo perfeitamente o caminho que levava à rua do
bordel que, nessa altura ainda não tinha sido encerrado por força da lei; mas
nesse ano hesitou antes de entrar, como se não quisesse mostrar uma sofreguidão
que já não era capaz de sentir, até porque conhecia quase todas as mulheres que
ali estavam, e esse conhecimento antecipado dos gestos do sexo que cada uma
delas executava lhe esgotasse o prazer.
Ficou no carro, em frente da porta, observando a atitude dos homens de
meia-idade, hesitando uns segundos antes de tocarem à campainha. Apercebeu-se
de movimentos no patamar, onde um outro homem conversava com alguém que não
via, já na obscuridade da escada, até que o homem acabou por subir, e uma
mulher assomou, o rosto jovem mas demasiado pintado, e os cabelos penteados de
forma a correrem para cima dos ombros. Os outros avançaram, entrando também
eles para esse patamar, onde se demoraram menos tempo do que o cliente anterior,
talvez porque a decisão estivesse já formada e tivesse bastado a imagem de Eva
para que os últimos escrúpulos tivessem desaparecido, além de que uma decisão
de grupo é sempre mais sólida do que a vontade individual, dominada muitas
vezes por um remoto sentimento do pecado que nem a consciência de que o mal
será redimido por uma futura confissão pode evitar, sobretudo porque essas
confissões são sempre penosas, e ainda mais quando o padre que está por detrás
das grades é alguém conhecido, capaz de reconhecer a voz que descreve a fuga conjugal,
e carregando então no número de terços da penitência, proporcional à
responsabilidade social da ovelha desgarrada numa noite de lençóis sujos.
O Senhor saiu do carro, aproximando-se do prédio baixo, de janelas
fechadas, mas deixando ver pelas frinchas uma luz que lhe pareceu vermelha,
embora não tivesse a certeza de que fosse aquela a luz que servia para iluminar
aqueles encontros que serviam de coroação ao fim de festa, um fogo de artifício
erótico muitas vezes acabando na decepção com que a mulher dava por findo o
acro e despedia o homem, secamente. A luz agitou-se; e percebeu que era um
cortinado vermelho que escondia de fora os encontros secretos. Perguntou o que
estava ali a fazer, ou porque não entrava, e repetiu instintivamente o gesto de
apalpar o sexo, ouvindo de súbito os guinchos dos bácoros e quem os capadores tinham
arrancado a força: viu-se na situação deles, e apercebeu-se de que começara a
engordar, e que isso o tinha afastado do desejo, mas não da tentação, que agora
o despertava, tanto mais que um outro rosto o olhava com acenos provocatórios
da porta. Mas a chuva começou a cair com mais força, batendo nas pedras, e
obrigou-o a correr de volta para o carro, onde se meteu já completamente
encharcado, preparando-se para uma gripe certa, com a humidade que se formava
nos vidros a impedi-lo de ver um mundo subitamente ameaçado pelo dilúvio.
Voltou para casa devagar, sabendo que iria demorar o dobro do tempo, obrigado a
conduzir devagar, com os faróis no máximo mas, mesmo assim, não o deixando ver
mais do que um palmo de alcatrão em frente, a não ser quando se cruzava com outros
faróis e assistir por instantes, a uma dança de cortinas de água por entre
troncos de árvores de que só via as barras brancas da cal.
Continuou a ver esse bailado durante algum tempo, na cozinha, enquanto
aquecia o jantar, enquanto os mil ruídos de uma casa velha, numa noite de
chuva, lhe traziam sinais de presenças múltiplas, que não entendia, pensando
obsessivamente naquele rosto cujo apelo recusara. Ouviu então bater à porta,
várias vezes, o que o fez correr para a abrir, já que o toque insistente
traduzia o desespero de quem devia estar a apanhar com a água toda do céu, mas
não, a figura que estava em frente da porta era a de alguém que reencontrara de
passagem, no mercado, e a quem dissera para aparecer, para lembrar uma adolescência
em que se tinham cruzado, e ele tinha gostado dela mas, numa idade em que essas
coisas não se diziam, só o remorso por se ter calado lhe servia de tormento.
Ajudou-a a entrar, e riram-se enquanto ele tentava fechar o grande chapéu de
chuva preto, de onde escorria uma cascata que inundava o átrio, quando ele
fechava a Porta vencendo a resistência do vento». In Nuno Júdice, Vésperas de
Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT