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Alcoólicas
[…]
III
«Alturas, tiras, subo-as,
recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca.
Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal
que coaxa.
Que estiola galhofa. Que
desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotómicas líricas, e a gaicagem
Se transforma em galarim, e é
translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado quotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes,
canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o
copo, a casa.
Ah,
o todo se dignifica quando a vida é liquida».
IV
«E
bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que
condena
O nosso olhar gasoso: então,
bebendo?
E respondemos lassas lérias
letícias
O lusco das lagartixas, o
lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas,
drenos
E afasta-se de nós o sólido de
fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias.
Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e
remendo
Meu casaco rosso tecido de acuçena.
Se
dedutiva e líquida, a Vida é plena».
V
«Te
amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado
rosado
Salpicado de negro, de doçuras e
iras.
Te amo, Líquida, descendo
escorrida
Pela
víscera, e assim esquecendo
Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola
Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa,
comida
E um Mais que se agiganta, um
Mais
Conquistando um fulcro potente na
garganta
Um látego, uma chama, um canto.
Ama-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me.
Sou menos
Quando
não sou líquida».
[…]
Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa
Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.
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