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«(…) Bellamy, movimento!
apresentou-se o velho do olhar gelado, a voz baixa e rouca dos que estão
habituados a comandar e a ser obedecidos com um estalar de dedos. Frank
Bellamy. O segurança suíço observava o cartão, embasbacado. O senhor é da..., é
da..., CIA, confirmou Bellamy num tom ácido. Parabéns, rapaz, parece que sabe
ler. É um fucking génio.
Um burburinho nervoso enchia a grande sala de controlo do CERN. Engenheiros,
técnicos informáticos e físicos acotovelavam-se no salão, os primeiros com a
atenção presa nos monitores, os últimos em silêncio ou a trocarem observações
num sussurro nervoso e expectante. A tensão tornara-se tão espessa que parecia
palpável. Não era de admirar. O trabalho que tinham em mãos envolvia grande
responsabilidade, pois permitia responder às
questões mais fundamentais da nossa existência. Como foi o momento da criação
do universo? Quantas dimensões existem? Há um anti-universo? O zumbido da
electrónica a computar e o murmúrio dos aparelhos de ar condicionado a
funcionarem no máximo enchia a sala de controlo. O rumor permanente era rompido
apenas pela voz seca do director a coordenar a operação e pelas respostas
sincopadas dos técnicos a quem ia dirigindo as perguntas à vez, como um maestro
a harmonizar uma orquestra. O Booster?, quis saber o director, a mão agarrada a
um mug de café com o logotipo do CERN. Já está a funcionar a toda a força?
Negativo, foi a resposta do
técnico que monitorizava o Booster. Ainda se encontra em aceleração. Qual o
valor? Energia, setenta megaelectrões-volt e a crescer. A próxima injecção será
no anel um, segmento um, dois pacotes. Cbeck. O director calou-se. Setenta
megaelectrões-volt era uma energia relativamente
baixa, mas o facto é que as micropartículas tinham acabado de sair do Liriac 2
a cinquenta megaelectrões-volt e era normal que o Booster levasse algum tempo a
chegar aos um vírgula quatro gigaelectrões-volt necessários para os protões
serem encaminhados para o mais velho acelerador de partículas do CERN, o
Proton Synchroton. Bebericou um
trago de café, enquanto seguia a informação no seu monitor. Paul, como estão os
magnetos?, perguntou. Em linha com o ritmo de aceleração dos protões? Afirmativo,
confirmou Paul, responsável pela monitorização do funcionamento dos magnetos de
nióbio e titânio. O campo magnético foi criado e está a tornar-se mais forte à
medida que os protões aceleram. Não há problemas neste sector.
Os olhos castanhos do director
não largavam o ecrã, onde se sucediam números a um ritmo que parecia crescente.
Max, o hélio?, questionou, dirigindo-se a um terceiro técnico. Permanece
estável? Afirmativo. Os olhos colados ao monitor ficaram presos numa coluna e o
que viu manifestamente não lhe agradou. Fez uma careta acompanhada por um
grunhido, pousou o mug de café junto ao ecrã e voltou-se para o outro lado da sala.
Como vai o PS, Heinrich?, perguntou,
impaciente, referindo-se ao Proton
Synchroton no jargão coloquial do CERN. Já está a postos para receber os
protões? Negativo, Herr Direktor.
Falta algum tempo para chegar aos um vírgula quatro gigaelectrões-volt. Qual o
valor agora? Energia, noventa megaelectrões-volt e a crescer. Porra, Heinrich,
isso está atrasado!, protestou, consciente de que o timing era crucial para o sucesso da operação; a passagem
do Booster para a fase seguinte não podia sofrer demoras. Despacha-te com isso!
Quero o PS em movimento quando
os protões atingirem o valor de um gigaelectrões-volt, ouviste? Ja wol, Herr Direktor.
A impressão de que estava a ser
seguido tornara-se muito forte nos últimos
minutos e levou Frank Bellamy a deter-se junto de uma esquina do corredor e a
lançar um longo e cuidadoso olhar para trás. Examinou o espaço vazio em busca
de movimentos reveladores ou de sombras incriminatórias, mas nada detectou de
anormal. Susteve a respiração e permaneceu trinta segundos em silêncio
absoluto, atento ao mais pequeno som estranho que ali se pudesse escutar. A
verdade, porém, é que o crescente rumor do acelerador de partículas em plena
operação tornava difícil destrinçar qualquer ruído suspeito, o que inutilizava
aquele exercício. Se alguém de facto o seguia, percebeu, não seria assim que o
descobriria.
Respirou fundo. Be damned!, praguejou entre dentes. Ou
estou a ficar senil e já vejo fantasmas por toda a parte ou então o gajo que me
anda a seguir é muito bom... Dobrou a esquina e seguiu em frente, ainda atento
aos espectros que pressentia a assombrarem
os corredores. Sabia que a intuição raramente o enganava nessas coisas; se tinha a impressão
de que estava a ser seguido era porque de facto isso sucedia. Já sentira coisas
assim em Berlim Oriental e em Adis Abeba, nos saudosos tempos da Guerra Fria, e
na altura constatara que tinha razão e conseguira liquidar os seus
perseguidores num beco escondido. Quem lhe garantia que o mesmo não se estava a
passar nesse momento? Mesmo assim, reconsiderou. O lugar onde se encontrava não
era normal e talvez isso lhe estivesse a nublar a intuição e o raciocínio. Quem
sabe se na origem do problema não estaria o poderoso campo criado pelos grandes
magnetos que operavam nessa altura? Tinha perfeita consciência de que, a partir de determinado
limiar, o magnetismo pode interferir nos processos cognitivos dos seres vivos,
e talvez uma coisa dessas lhe estivesse a suceder». In José Rodrigues dos Santos, A Chave
de Salomão, 2014, Gradiva, 2014, ISBN
978-989-616-602-1.
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