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Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) A Titi leu, a Titi gostou. E
agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe que ia ouvir a Norma, beijava com
unção os ossos dos seus dedos; e corria, ao Largo dos Caídas, à alcova da
Adélia, a afundar-me perdidamente nas beatitudes do pecado. Ali, à meia-luz que
dava através da porta envidraçada o candeeiro de petrolina da sala, os cortinados
de cambraia e as saias dependuradas tomavam brancuras celestes de nuvem; o cheiro
dos pós-de-arroz excedia em doçura o odor dos junquilhos místicos; eu estava no
céu, eu era São Teodorico; e sobre os ombros nus da minha amada,
desenrolavam-se as madeixas do seu cabelo negro, forte e duro como a cauda de
um corcel de guerra. Numa dessas noites, eu saía de uma confeitaria do Rossio,
de comprar trouxas-de-ovos para levar à minha Adélia, quando encontrei o Doutor
Margaride que me anunciou, depois do seu abraço paternal, que ia ao São Carlos
ver o Profeta. E você, vejo-o de casaca, naturalmente também vem... Fiquei
varado. Com efeito vestira a casaca, dissera à Titi que ia gozar o Profeta,
ópera de tanta virtude como uma santa instrumental de igreja.. E agora tinha de
sofrer o Profeta, deveras, entalado numa cadeira da geral, roçando o joelho do
douto magistrado, em vez de preguiçar num colchão amoroso, vendo a minha deusa,
em camisa, comer o seu docinho de ovos. Sim, com efeito, também eu ia daqui
para o Profeta, murmurei aniquilado. Diz que é uma musicazinha de muita
virtude... A Titi gostou muito que eu viesse. Com o meu inútil cartucho de
trouxas de ovos, lá fui subindo, melancolicamente, ao lado do Doutor Margaride,
a Rua Nova-do-Carmo. Ocupamos as nossas cadeiras. E na sala resplandecente,
branca e com tons de ouro, eu pensava saudosamente na alcova sombria da Adélia,
e no desalinho das suas saias, quando reparei que de uma frisa ao lado uma senhora
loura e madura, uma ceres outonal vestida de seda cor de palha, voltava para
mim, a cada doce arcada das rebecas, os seus olhos claros e sérios.
Perguntei logo ao Doutor Margaride
se conhecia aquela dama que eu costumava encontrar às sextas na Igreja da
Graça, visitando o Senhor dos Passos com uma devoção, um fervor... O sujeito
que está por trás, a abrir a boca, é o visconde Souto Santos. E ela ou é a
mulher, a viscondessa de Souto Santos, ou a cunhada, a viscondessa de
Vilar-o-Velho... À saída, a viscondessa (de Souto Santos ou de Vilar-o-Velho)
ficou um momento à porta esperando a sua carruagem, embrulhada numa capa branca
que uma penugem orlava, delicadamente; a sua cabeça pareceu-me mais altiva,
incapaz de rolar, tonta e pálida, num travesseiro de amor; a cauda cor de palha
alastrava-se sobre as lajes; era esplêndida, era viscondessa; e outra vez me
procuraram, me trespassaram os seus olhos claros e sérios.
A
noite estava estrelada. E, descendo o Chiado em silêncio ao lado do Doutor
Margaride, eu pensava que, quando todo o ouro da Titi fosse meu e dourasse a
minha pessoa, eu poderia então conhecer uma viscondessa de Souto Santos ou de
Vilar-o-Velho, não na sua frisa, mas na minha alcova, já caída a grande capa
branca, despidas já as sedas cor de palha, alva só do brilho da sua nudez, e
fazendo-se pequenina entre os meus braços... Ai, quando chegaria a hora, doce
entre todas, de morrer a Titi? Quer vir tomar o seu chá ao Martinho?,
perguntou-me o Doutor Margaride ao desembocarmos no Rossio. Não sei se você
conhece a torrada do Martinho... É a melhor torrada de Lisboa. No Martinho, já
silencioso, o gás ia adormecendo entre os espelhos baços; e havia apenas numa
mesa do fundo um moço triste, com a cabeça enterrada entre os punhos, diante de
um capilé». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva
Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011,
ISBN 978-989-711-008-5.
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