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1754-1758
«(…) Antes de se levantarem as rajadas de
vento forte que ajudarão a incendiar Lisboa, o ar imobiliza-se numa espécie de odor turvo e pestilento, cheiro acre a
enxofre e a lodo estagnado do rio, a que se mistura o gosto salgado do mar, a
acidez apodrecida do suor do medo, mas igualmente do vómito, das fezes e da
urina.
De manhã Maria gosta de ficar na cama, entorpecida,
amodorrada na quentura dos sonhos, magrinha e sumida no ninho dos cobertores e
dos lençóis de linho fino com renda na dobra larga, que ela puxa a esconder-se,
antecipando-se à ama que todos os dias abre as janelas, portadas de madeira
para trás a deixar entrar o ar fresco do começo da manhã. Leonor, pelo
contrário, ergue-se de madrugada pelo gosto de acordar no silêncio da casa à
escuta do sono dos outros, mais livre para inventar, poder fazer o que mais lhe
apetece. Levanta-se pois de manso, pés miúdos e brancos debruçados de um dos
lados do leito, enquanto se espreguiça alteando o corpo franzino escondido pela
camisa de cambraia bordada a ponto de cruz na gola de abotoadura, cabelo
frisado, caracóis de mel caídos em desalinho nos ombros miúdos. E quando
finalmente ganha coragem para enfrentar a escuridez, desliza para o soalho de
lustro puxado, embrulha-se arrepiada no xaile esquecido na véspera pela mãe quando lhes fora dar a boa-noite,
silhueta delgada a curvar-se à luz bruxuleante da pequena lamparina do
oratório: pavio amarelado a vogar aceso e devagar no cimo do azeite, diante da
imagem do Menino Jesus vestido de pano branco, faixa debruada a ouro, dois
dedos da mão direita soerguidos, enquanto com a esquerda aponta o próprio
coração, como quem impõe a pureza no sítio onde se demora o negrume. Mas Leonor
não pode ainda entender esses gestos de anseio e eternidade, instruída apenas
na beleza loura e pura do Menino, que imagina estar a abençoá-la.
É nessa tremeluzente chama do oratório
de talha que acende a vela da palmatória da sua mesa-de-cabeceira, e em
seguida, dominando a custo a vontade de largar numa corrida tumultuada pelo
corredor cheio de sombras ameaçadoras que parecem persegui-la, segue pé ante pé
e de olhos franzidos. Por cada porta que se mantém fechada suspira de alívio, a
caminho do gabinete escolhido nesse ano para sua sala de estudo, onde
entretanto aprendera a ler sozinha. E quando lá chega pousa no chão a
palmatória, estica ambos os braços finos até conseguir agarrar o puxador de
louça. Ao entrar olha em torno, desconfiada, a perscrutar os possíveis perigos,
sobretudo onde a fraca chama do círio não alcança. Mas aquele é o lugar certo
para ela começar o dia que desponta, revendo
desde o princípio as gravuras do livro que a custo largara ao fim da tarde da
véspera. Assim, tremendo com o frio da madrugada, dirigiu-se afoita à escrivaninha
que a avó Leonor Távora lhe deu no Natal e a mãe quisera encostar à parede
grande, do lado direito da janela, diante da qual crescem a perder de vista as
magnólias, os cedros e as tílias. Mais tarde o sol cairá nas suas copas,
soltando os odores dolentes e doces a temperarem as essências ásperas, ácidas,
a fazer piscar os seus olhos toldados pelas longas pestanas. Leonor prefere a
fulva tonalidade da glicínia, que contamina o fundo do jardim com um rubor
intenso, trepando pelo muro alto, quase a chegar ao ferro do portão que abre
para a mata.
Senta-se
na cadeira alta e abeira-se do tampo da escrivaninha onde na véspera cuidara de
dissimular o livro, debaixo de papéis e cadernos que tirara da mesa da
biblioteca. Antes de o abrir afaga-lhe a capa castanha de pele macia. Lá dentro
encontram-se os mapas celestes, tal como lhos mostrara o pai, debruçado sobre
eles tardes inteiras na procura de respostas para as dúvidas de ambos. Folheia
uma após outra as páginas preciosas, detendo-se nas gravuras que conhece de
cor, na esperança de descobrir nelas um pormenor diferente, na esfera armilar
ou no astrolábio de que tanto gosta de repetir o nome, no desenho onde
se vê o sol ao centro com planetas girando à sua volta. No cimo de muitos dos
desenhos estão figuras de anjos num curto voo parado, dando a ver a toda a
largura dos seus braços abertos faixas com frases escritas em latim. Em baixo,
pensativa, encontra-se a deusa da sabedoria, com a lira, os livros, enquanto
marca equívoca da passagem dos séculos». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor,
Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
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