segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Madame Bovary. Gustave Flaubert. «Uma noite, por volta das onze horas, foram acordados pelo barulho de um cavalo que parou bem em frente à porta. A criada abriu o postigo do celeiro e trocou algumas palavras com o homem…»

jdact

«(…) Nas belas noites de Verão, na hora em que as ruas mornas estão vazias, quando as criadas jogam peteca na soleira das portas, ele abria a janela e nela apoiava os seus cotovelos. O rio, que dá ares de uma pequena e ignóbil Veneza a esse bairro de Rouen, corria lá baixo, amarelo, violeta ou azul, entre as suas pontes e grades. Trabalhadores, acocorados na margem, lavavam os seus braços na água. Em varas que saíam do alto dos sótãos, meadas de algodão secavam ao ar livre. Em frente, acima dos telhados, o céu puro se estendia, com o sol vermelho que se punha. Como o tempo devia estar bom por lá! Que frescor no faial! E abria as narinas para aspirar os bons odores do campo, que não chegavam até ele. Emagreceu, seu corpo esticou-se e o seu rosto ganhou uma espécie de expressão dolente que o tornou quase interessante. Naturalmente, por desleixo, acabou por deixar de lado todas as resoluções que se impusera. Uma vez, perdeu o acompanhamento da consulta, no dia seguinte, a aula, e, saboreando a ociosidade, pouco a pouco foi deixando de comparecer.
Passou a frequentar cafés, apaixonando-se especialmente pelo dominó. Confinar-se todas as noites num local público sujo para bater em ossinhos de carneiro marcados com pontos pretos sobre mesas de mármore parecia-lhe um acto precioso de liberdade, que aumentava sua auto-estima. Era como uma iniciação ao mundo, o acesso aos prazeres proibidos; e, ao entrar, girava a maçaneta com uma alegria quase sensual. Então, muitas coisas que se encontravam comprimidas dentro dele dilataram-se; passou a saber de cor estribilhos de boas-vindas que cantava, entusiasmou-se com Béranger, aprendeu a fazer ponche e enfim conheceu o amor. Graças a esses trabalhos preparatórios, foi reprovado no exame oficial de saúde. Esperavam-no à noite em casa para festejar o seu sucesso! Foi embora a pé e parou na entrada do vilarejo onde, pedindo que chamassem sua mãe, contou-lhe tudo. Ela o desculpou, atribuindo o fracasso à injustiça dos examinadores, e o fortaleceu um pouco, encarregando-se de arranjar as coisas. Somente cinco anos mais tarde o sr. Bovary ficou sabendo da verdade, que já era velha, e ele aceitou-a, não podendo, aliás, supor que o homem que pusera no mundo fosse um tolo.
Charles pôs-se outra vez ao trabalho e preparou sem interrupção as matérias do seu exame, cujas questões passou a saber de cor. Passou com uma nota bastante alta. Que dia mais feliz para a sua mãe! Foi oferecido um grande jantar. Onde exerceria o seu ofício? Em Tostes. Ali havia apenas um médico já velho. Há muito tempo a sra. Bovary esperava a morte dele, e o infeliz ainda não tinha batido as botas quando Charles se instalou em frente, como seu sucessor. Mas ter criado seu filho, tê-lo feito estudar medicina e encontrado Tostes para exercê-la não bastava: era preciso também encontrar uma mulher. Encontrou uma: a viúva de um oficial de justiça de Dieppe, que tinha 45 anos e 1.200 libras de renda. Embora fosse feia, seca como uma vara e cheia de bexigas, a verdade é que a sra. Dubuc podia escolher entre os seus pretendentes. Para chegar aonde queria, a sra. Bovary foi obrigada a livrar-se de todos eles e frustrou muito habilmente os planos de um salsicheiro que contava com o apoio dos padres.
Charles via no casamento o advento de uma melhor condição, imaginando que seria mais livre e poderia dispor de si e do seu dinheiro. Mas era a sua mulher quem mandava; devia, diante da sociedade, dizer isso, não dizer aquilo, fazer jejum nas sextas-feiras, vestir-se como ela queria, assediar por ordem dela os pacientes que não pagavam. Ela abria as suas cartas, espiava as suas negociações e escutava, pela divisória, as consultas no seu consultório quando os pacientes eram mulheres. Exigia chocolate todas as manhãs, atenções sem fim. Queixava-se sem parar dos seus nervos, do seu peito, dos seus humores. O barulho de passos incomodavam-na; se os passos eram interrompidos, a solidão era-lhe odiosa; se alguém vinha vê-la, era para assistir à sua morte, sem dúvida. À noite, quando Charles voltava para casa, ela tirava de baixo dos lençóis os seus braços magros e compridos, enroscando-os no pescoço dele, e, tendo feito com que se sentasse ao pé da cama, punha-se a falar dos seus desgostos: ele a esquecera, estava amando outra! Bem que lhe tinham dito que seria infeliz, e ela acabava por pedir um xarope para a sua saúde e um pouco mais de amor.

Uma noite, por volta das onze horas, foram acordados pelo barulho de um cavalo que parou bem em frente à porta. A criada abriu o postigo do celeiro e trocou algumas palavras com o homem que ficara por baixo, na rua. Vinha chamar o médico; trazia consigo uma carta. Nastasie desceu os degraus tremendo de frio e abriu todas as fechaduras e todos os ferrolhos. O homem deixou o seu cavalo e, acompanhando a criada, entrou logo atrás dela. Tirou de dentro do seu gorro de lã com borlas cinza uma carta embrulhada em um trapo e apresentou-a delicadamente a Charles, que se ergueu com o auxílio do travesseiro para lê-la. Nastasie, próxima da cama, segurava uma lamparina; a mulher, por pudor, ficara voltada para a ruazinha e dava-lhe as costas». In
Gustave Flaubert, Madame Bovary, 1856, Relógio D’Água, 2011, ISBN 978-989-641-177-0.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT