Cortesia
de wikipedia e jdact
Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) No quarto do Grand Hotel
Palatino, Sarah sentiu-se indisposta. Por várias vezes as náuseas subiram à
boca, ocas, sem conteúdo. Puxava o vómito sentada no chão do quarto de banho
com a cabeça no rebordo da sanita. Nada. Francesco assistia impotente. Queres
que chame um médico?, perguntou preocupado. Não. Isto já passa, respondeu ela
preparando-se para puxar novamente. Não lhe dissera que isto já não era de
agora. Os sintomas já se vinham fazendo sentir desde Londres. Vou pedir um chá
quente. Vai-te fazer bem. Pegou no auscultador do telefone que tinha no
interior do quarto de banho. Sim. Faz isso. Obrigada. E puxou pelo vómito que
não trazia nada. Uma aflição oca, um mal-estar vazio. Ai. Que raio, lamentou-se.
Francesco fez o pedido e pousou o auscultador. Depois aninhou-se e abraçou Sarah.
Queres ir para a cama?, inquiriu carinhosamente. Deixa só ver se isto já
acalmou. Sarah sabia que acalmava sempre. Durava alguns minutos e depois era
como se nada tivesse acontecido. Francesco fitou a namorada, debruçada sobre a
sanita como alguém que se embriagava todas as noites. Não deixava de sentir um
enternecimento, uma necessidade de a fazer sentir-se bem. Fitou-a seriamente. Sarah,
disse a medo. Sei que não é o momento propício, mas talvez fosse melhor irmos a
uma farmácia, contemplou a reacção dela. Porquê? O enjoo acalmara.
Sabes muito bem porquê, querida.
Sorriu. Não temos propriamente sido castos nos últimos tempos. Sarah nem sequer
queria pensar nisso. Uma gravidez não estava nos seus planos neste momento. Não
que tivesse alguma coisa contra Francesco, nada disso, ele seria um pai
exemplar, mas...
Vou ao médico quando regressarmos,
propôs ela. Tens a certeza?, Francesco mirava-a com ar condescendente. Sim,
tenho. Depois de amanhã resolvemos isso. Ajuda-me a levantar, por favor. Francesco
elevou-se puxando-a consigo e abraçou-a com força. Estou contigo para o que der
e vier. Não te deixarei ir para comprar cigarros, pronunciou a sorrir. Sarah
comprimiu-se de encontro ao peito dele e fechou os olhos. Uma lágrima
derramou-se na camisa de Francesco. Sentia-se perdida, e apesar do italiano
lindo que lhe afiançava o amor, sentia-se sozinha, sem ninguém que a amparasse...
Excepto Francesco, o deus italiano, de Ascoli que oferecera o seu coração à
luso-britânica. Nesse momento ouviu-se uma pancada leve na porta. Deve ser o
serviço de quartos, disse Francesco. Estás bem, querida?
Olhou para o rosto e limpou-lhe
os olhos marejados. Beijou-a na testa. Sarah olhou-se ao espelho, libertou-se
do abraço de Francesco e colocou as duas mãos sobre o lavatório, fitando-se, as
imperfeições, os olho vermelhos, a lividez do rosto. Estou bem, Francesco.
Atendes por favor? Vou só lavar o rosto, pediu continuando a avaliar-se ao espelho.
Claro. O deus italiano anuiu e foi abrir a porta onde alguém tornara a bater
com um pouco mais de força. Já vai, gritou em italiano antes de sair do quarto
de banho. Sarah massajou os olhos com os dedos na esperança que quando os
abrisse novamente visse outra mulher à sua frente. Outra cor. Nova disposição.
Vontade de seguir em frente. Aquela vontade férrea que a acompanhava quando
deixou Rafael no bar há seis meses e passou assim que a fúria e a raiva se
esfumaram. Ele deixara-a seguir o seu caminho. Não tornara a ligar, nem a
procurá-la. A protecção que Rafael lhe conferia dissolveu-se. Tinha saudades
dele, mesmo dos silêncios prolongados. Quando olhava pela janela e não o via,
mas sabia que ele andava por ali, como um anjo-da-guarda. Tudo isso terminara
há seis meses, depois daquela conversa de um só sentido no Walker's Wine and Ale Bar. Estaria em
Roma ou em alguma missão perigosa por esse mundo? Às vezes dava por si a pensar
nisso. Apetecia-lhe ligar para ele. Saber como estava. Se estava tudo bem na
paróquia dele, como corriam as aulas na universidade. E depois caía em si... E no
ridículo da situação. Olá Rafael
Queria saber se estás bem. E os meninos na tua paróquia? Os teus alunos? Olha,
ainda te amo. Toda essa diarreia mental parou com a voz de Francesco que
vinha do quarto. Ah! Acho melhor vires aqui, Sarah. Sarah passou água pelo
rosto e enxugou-o com uma toalha. Foi ao quarto e viu Francesco à porta. O que
foi? Acercou-se da porta e viu um prelado jovem, batina negra, tez negra,
expressão circunspecta. É para ti, explicou Francesco. Boa noite, cumprimentou
Sarah. Boa noite, menina Sarah. Pediram-me que viesse buscá-la. Pediram-lhe?
Quem pediu? Que coisa mais estranha. Não estou autorizado a revelar. Lamento,
desculpou-se o jovem padre.
A
curiosidade jornalística sobrepôs-se ao temor. Calçou-se e pegou no casaco. Já
venho. Queres que vá contigo?, voluntariou-se o deus italiano. Sarah fitou o
jovem clérigo e analisou-o durante uns instantes. Não. Está tudo bem. Desceram
no elevador até ao piso da recepção. Já era noite. Olhou em redor e não viu
ninguém. Nem na recepção, que costumava ter sempre alguém atrás do balcão
pronto para atender ao hóspede mais incauto ou curioso, estava alguém. Parecia
um hotel despido de vida. Como se o mundo tivesse parado durante alguns
instantes e fosse desprovido de gente». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
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