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Soure. Julho de 1132
«(…) Também ele entrara naquele
casão agrícola, onde vira a mulher já degolada, o assassin a vomitar
golfadas de sangue, o almocreve no chão e as duas princesas chorando a morte da
mãe. Fora o Rato quem tirara a lâmina da garganta do facínora, pousando-a num
balde com água, para a lavar do sangue, mas depois a arma eclipsara-se misteriosamente,
no meio daquela tremenda confusão. Nas horas seguintes à tragédia, Ramiro
questionara todos os presentes no local, mas nada descobrira. O autor do roubo
não se confessara. Teria sido Zaida, a mais nova das princesas de Córdova, que
num movimento rápido pegara na arma? O Velho não sabia, mas, três anos depois,
a verdade é que o punhal se encontrava na posse da princesa e mantinha-se
deveras valioso. Que melhor presente podia ele levar ao Trava?
Certificando-se de que a casa das
princesas estava vazia, o Velho entrou pelas traseiras e começou a vasculhar. O
punhal tinha de estar por ali. Encontrou-o escondido numa arca, coberto por
dezenas de alifafes, vestidos e túnicas. As suas mãos tremeram quando lhe pegou.
Lá estava a pérola no topo, a lâmina afiada e a inscrição em latim, gravada no
cabo. Sem se preocupar em ocultar o assalto, o Velho deixou a casa desarrumada
e saiu pelo mesmo sítio por onde entrara, com o produto do roubo escondido nas
vestes. Enquanto se dirigia a casa do ferreiro galego, com ar falsamente combalido,
o Velho sorria, contente consigo próprio. O Trava ia ficar a saber onde estava
a relíquia, aquela palavra em latim era a chave para a encontrar! Grato, o seu
senhor talvez lhe oferecesse umas benesses, uma boa casa onde terminar os seus
dias, uma rapariga que pudesse possuir, antes de se apagar.
Durante seis longos anos,
forçara-se a uma castidade insuportável, para não levantar suspeitas na Ordem
do Templo, mas estava na hora de colocar um ponto final naquela via sacra!
Embalado por este excitante pensamento, bateu à porta do ferreiro, que lhe
cedeu uma mula, montado na qual o Velho saiu de Coimbra. Já na estrada, deu-se
conta de que transportava na alma apenas um único agravo. Não conseguira matar
aquela velha senil, a bruxa a quem não perdoava a antiga desavença. A sua fúria
contra Sohba não se desvanecera, pelo contrário. Cada vez odiava mais aquela
mulher e cuspiu para o chão, irritado por não a ter eliminado da face da Terra.
Como é evidente, naquele dia o
Velho não sabia que em breve regressaria ao Sul e teria nova oportunidade para
tentar destruir a estranha e misteriosa Sohba. A bruxa ligou-nos a todos, era o
que sempre me dizia a princesa Zaida.
Coimbra, Julho de 1132
Naquele final de manhã, estávamos
reunidos com o bispo Bernardo na Sé, quando lá entrou o agitado Ramiro. Vendo-o
avançar, Afonso Henriques ergueu as sobrancelhas, curioso: haveis finalmente
encontrado a relíquia? Meu pai, meu tio Ermígio, Peres Cativo e eu próprio
mirámos o bastardo de Paio Soares. Pai, eles odeiam-me... Embora bem
mais entroncado do que no passado, Ramiro pareceu-me nervoso e baixou os olhos
quando narrou o sucedido nas margens do Nabão, onde encontrara uma companhia de
galegos empalados por Abu Zhakaria.
Que
descaramento, rugiu o príncipe de Portugal. Enviar soldados para me roubarem a
relíquia! A fúria do meu melhor amigo contra Fernão Peres Trava reacendeu-se.
Uma expedição galega ao Nabão era um atrevimento inaceitável! Logo ali, o
príncipe imaginou uma retaliação na Galiza, um qualquer gesto bélico que lhe
extinguisse a cólera. O Castelo de Celmes não está pronto, lembrou, porém, meu
pai. Gonçalo Sousa dirigia as obras na fortificação, mas só se previa a
conclusão da muralha no Natal, o que significava que os portucalenses eram
vulneráveis a um ataque surpresa do Trava». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN
978-989-741-461.
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