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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Já tinha ouvido falar do
coronel James Bowles. Em 1941, a desorganização dos serviços secretos ingleses
em Lisboa era grande e o comando não estava centralizado. Era pois fácil saberem-se
segredos sobre as pessoas. Bowles, o marido de Mary, era o chefe do SOE
(Special Operations Executive) em Portugal. Uma espécie de serviço secreto
paralelo, o SOE fora criado por Churchill, que motivara o seu primeiro comandante
com a célebre frase: vá e incendeie a Europa. Coisa mais fácil de dizer do que
de fazer. O SOE partiu à desfilada, com excesso de vontade e inteligência
limitada. James Bowles, coronel do exército, fora enviado para Lisboa em finais
de 1940 e conhecia mal o país. As suas acções, bem como os seus discursos em jantares
ou cocktails, geraram-lhe em poucos meses uma fama de impetuoso e imprudente. Era
óbvio que, se eu sabia que ele era o chefe do SOE, também os alemães do outro
lado da rua o sabiam. Corria mesmo o rumor de que as indiscrições do coronel
Bowles, os seus contactos com os comunistas e os republicanos que se oponham ao
regime, haviam começado a incomodar Salazar.
O meu marido é um cabeça dura,
declarou Mary. Nesse momento, o Citroen cruzava a Álvares Cabral e senti-me
desleal por passar àquelas horas pela rua onde morava a minha noiva, a
Carminho, com outra mulher no carro. Se não ganha juízo ainda é mandado de
volta para Inglaterra, continuou Mary. E eu com ele. Pareceu-me uma punição
demasiado severa e tentei desdramatizar: isso não vai acontecer. Eles
respeitam-nos. Queria com isso dizer que a PVDE respeitava os ingleses. Mary
talvez estivesse à espera de uma oportunidade daquelas, pois começou de imediato
a provocar-me, dando uma pequena gargalhada: respeitam-nos? Nós? Desde quando é
que o senhor Jack Gil faz parte desse grupo? Deu nova gargalhada. Não me digas
que o embaixador Campbell já te caçou? Embaraçado, tentei explicar-me: o que eu
queria dizer é que a PVDE respeita os ingleses, não vai expulsar o teu marido. Ela
voltou a rir-se: e o que sabes tu sobre o James, Jack Gil? Naqueles tempos, e à
excepção de Michael, todos os ingleses me tratavam por Jack Gil. Era uma subtil
diferenciação que me imputavam, acrescentando o Gil, o meu nome português, ao
Jack, o inglês. Como se me relembrassem, educadamente, que não era bem um
deles.
Sei que trabalha para a Shell,
respondi. Mary deu-me uma pequena sapatada na perna e fixou-me intensamente. De
olhos na estrada, a passar pelo Rato, tentei não me desconcentrar. O que foi?,
perguntei. Continuou a observar-me: já alguma vez ouviste uma bomba a cair? Confundido
com a mudança de assunto, senti-me apanhado em contrafé. Mary estava bem
informada: sabia que eu não tinha estado em Inglaterra. Tal como eu sabia que
ela ficara em Londres até Dezembro, sob o inferno das bombas alemãs. Não quero voltar
para lá. Por nada deste mundo declarou. O seu tom de voz era esclarecedor. Mary
estava com medo. Percebi tempos depois que esse era um dos motivos para a
perturbação da sua alma. Não voltou a falar até chegarmos a casa dela, na Rua
do Salitre. Parei o carro, saí e corri para lhe abrir a porta, as abas do meu casaco
levantadas pela força do vento. Ela teve dificuldade em sair: tentou segurar as
saias, mas não o conseguia fazer ao mesmo tempo que procurava as chaves de casa
dentro da sua bolsa. Então, de repente, gritou-me: segura-me nas saias!
Fiquei estático, surpreendido com
o pedido, e ela abriu muito os olhos, como que a repetir a ordem. Então
baixei-me, apoiei um joelho no chão e envolvi com os meus braços as suas
pernas, para parar o movimento esvoaçante das saias. Ao fazê-lo, é evidente que
lhe toquei nas pernas, mesmo que apenas levemente, e invadiu-me um princípio de
desejo. Entretanto, ela conseguiu finalmente tirar as chaves da carteira, e
tentou andar no sentido da porta, o que produziu o óbvio efeito de eu ainda a
apertar mais, sentindo as suas pernas tensas contra os meus braços. Embaraçado,
levantei-me e dei um passo atrás, enquanto ela entrava depressa em casa.
Convidou-me a entrar. No hall, Mary tirou o casaco e pendurou-o, assim como ao
chapéu, no bengaleiro. Depois propôs: e se bebêssemos um brandy?
Servindo o brandy, num tom de voz
desiludido, Mary comentou: estão muito à nossa frente, os alemães. Nós pomos
cegos a cantar versos, enquanto eles pagam aos intelectuais e ganham as mentes
dos portugueses. Não era má a ideia de pagar aos cegos no Rossio para cantarem
versos a favor dos ingleses. Mas até um tipo como eu, que não era um
especialista em propaganda, percebia que, em 1941, os alemães nos levavam vantagem.
A Esfera era uma revista pro-germânica, financiada pela Embaixada alemã.
Mantinha uma fiel linha pro-Salazar, elogiava a Legião Portuguesa e relembrava,
com cadência certa, as grandes façanhas de Mussolini, Franco e Hitler. É por
essas e por outras que eles nos estão a ganhar a guerra. Até aqui, em Portugal.
E Salazar faz o jogo deles, acusou Mary. As pessoas iam sempre ter a Salazar
nas conversas. Era como se as palavras se sentissem atraídas por uma força
invisível, como um íman. Os amigos dos alemães queixam-se do mesmo, retorqui». In
Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN
978-972-462-174-6.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT