Rio Lis, Junho de 1134
«O fossado portucalense ultrapassara
os limites cristãos das leis da guerra e a extrema violência dos estragos provocados
nas aldeias mouras indignou meu tio Ermígio Moniz. Ele também fora um guerreiro
no passado, mas o cargo de mordomo, a idade e sobretudo a experiência haviam-no
convencido de que a brutalidade não era a melhor das políticas. Tanta destruição
será vingada um dia, avisou. Afonso Henriques respeitava muito a opinião do mordomo,
mas dentro da sua alma não havia ainda descanso. Frustrado com o fiasco de Tui e
humilhado pela destruição do Castelo de Celmes, o príncipe de Portugal partira para
o Sul numa ânsia descontrolada e na pequena povoação de Pombal, um pouco a norte
do local onde estavam acampados agora, o fossado portucalense atingira o auge.
A aldeia mourisca fora saqueada e
incendiada. Mas, pior do que isso, Afonso Henriques dera ordens a Peres Cativo,
seu alferes, e a Paio Guterres para não pouparem os homens e cinco dezenas haviam
sido degolados, sendo depois empalados em lanças, espetadas no chão empapado de
sangue, coisa que meu tio não considerava aceitável. Poupei as mulheres e as crianças,
alegou Afonso Henriques, como se essa decisão o absolvesse dos restantes exageros.
Para conquistar os territórios, não podemos, nem devemos, dizimar as populações!,
exclamou meu tio.
Peres Cativo e Paio Guterres, ambos
valiosos combatentes, contestaram-no prontamente. Na guerra, o objectivo era matar
os inimigos, destruir as suas forças, as suas gentes, as suas cidades!
Aqueles territórios haviam sido cristãos
séculos antes, os usurpadores mouros tinham de ser afastados! Para que a
vitória dure, temos de seduzir as populações a nosso favor e depois convertê-las!, insistiu Ermígio Moniz. Uma campanha
bélica que se limitasse a exibições gratuitas de violência nada acrescentava.
Para que aqueles territórios não voltassem a ser retomados pelos mouros, era
necessário mais do que um fossado breve, eram necessários
castelos. Uma linha inteira deles era a única forma de empurrar os mouros para
o Sul e fixar as populações debaixo do domínio portucalense. Quereis construir
castelos neste ermo?, interrogou-se Paio Guterres, espantado.
O acampamento portucalense fora erguido junto à antiga estrada romana que
ligava Coimbra a Santarém, perto do rio Lis. Não se via vivalma por ali,
nenhuma aldeia existia por perto. Contudo, Ermígio Moniz examinou os campos à
sua volta e depois pediu: vinde comigo. O príncipe, o alferes e o
cavaleiro-vilão de Coimbra acompanharam o mordomo. Estava um fim de tarde
sereno e os quatro subiram um pequeno monte. Quando chegaram ao topo, Ermígio
Moniz disse: olhai à vossa volta.
Surpreendidos, os outros examinaram o horizonte. Do alto daquela elevação
podia ver-se a longa estrada romana nas duas direcções, acompanhando os vales
para sul, mas também para norte. Estavam num ponto privilegiado de observação e
Ermígio Moniz defendeu que ali se devia construir um castelo, chamado de
Leiria. Do alto da sua torre de menagem, veremos os inimigos muito antes de cá
chegarem. Ninguém podia negar aquela evidência. Curioso, o príncipe de Portugal
perguntou ao seu mordomo: como haveis sabido deste local? Meu tio respondeu-lhe
que os templários de Soure conheciam bem a região e haviam-lhe chamado a
atenção para aquele sítio. Foi o Ramiro?, questionou Afonso Henriques. O
príncipe talvez procurasse descobrir novos méritos no bastardo de Paio Soares,
que tanto o desiludira, mas ao ouvi-lo Peres Cativo protestou
de pronto, pois implicava com Ramiro. O uranista? Raios, este chão está
amaldiçoado!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória
do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia de
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