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As
três colunas da Cultura Portuguesa
Seara nova, a
coluna da esquerda
Choca-me muito nos governos de esquerda a incapacidade que têm para
sair do materialismo absurdo. In Maria João Pires
«[…]
ACF - Paulo, já
nos conhecemos há algum tempo, lemo-nos mutuamente e, portanto, conhecemos as
ideias um do outro. O Paulo certamente sabe que eu me encontro de alma e
coração, quase por instinto, muito próximo das ideias do Teixeira de Pascoaes.
É necessário observar com muito cuidado essas ideias, ao lado das de Sérgio. O
Pascoaes diz que há um génio português; o António Sérgio contrapõe que não há
génio nenhum e o que interessa é fazer tábua rasa da História e do passado. É óbvio que cada
um deles tinha razão a seu modo e que o diálogo dos dois foi um diálogo de
surdos. Se alguma verdade há nisto tudo, tem necessariamente de resultar, como
bem viu o Paulo Alexandre Esteves Borges, da fusão dos dois. De qualquer modo,
a fusão nunca será completa e cada época se aproximará mais de um ou de outro,
consoante as necessidades que se fazem sentir são de ordem estreitamente
material ou não. O que interessa para já é perceber como tudo funcionou na
época deles e passou depois a funcionar na nossa. Pascoaes viveu muito isolado
e foi muito criticado mesmo dentro da Renascença Portuguesa, até por
companheiros próximos. 1912 é a data em que efectivamente a Renascença
Portuguesa arranca; logo depois dela, em 1913-14, surge a polémica do Sérgio
com o Pascoaes, onde o confronto se faz essencialmente em torno da
industrialização do país, com Sérgio a apontar a florescente indústria inglesa
como exemplo e Pascoaes a defender a conservação do tecido rural português.
Pascoaes percebe que está sozinho e que tem muita dificuldade em fazer passar
as suas ideias, que dão continuidade ao último Eça e sobretudo ao democratismo
republicano de um Sampaio Bruno. Mesmo companheiros com afinidades fortes como
Jaime Cortesão começam a ter dúvidas em relação à eficácia do saudosismo. As
ideias de Antero, que a própria geração de 70 acabara por abandonar, voltam a
conhecer um avanço. Temos de nos introduzir no tempo, que era o deles.
Pascoaes, quando faz afirmações como aquela que o Paulo repetiu há pouco, é uma
espécie de profeta que tem razão antes do tempo. Na situação do Portugal de
1910, a ideia de fazer tábua rasa do passado era cativante e popular. Para
homens como o Cortesão, como o Leonardo, e até como o Bruno, homens que tanto
se empenharam na queda da monarquia, a ideia de que era preciso partir do zero,
era uma ideia cativante, que perturbava a cabeça das pessoas. Além disso, é
preciso pensar que, naquele momento, toda a Europa representava um padrão único
de desenvolvimento, que ninguém se atrevia a pôr em causa. O único que o pôs em
causa foi o Teixeira de Pascoaes. Por isso, eu digo que este homem está isolado
no seu tempo, uma espécie de profeta com razão antes do tempo. A dissidência da
Seara, arrastando
com ela tantos renascentes de primeira linha (a bem dizer só ficaram Pascoaes e
Leonardo), é, neste contexto, fácil de entender. As ideias de Antero quanto ao
país pareciam muito mais fáceis de aceitar que as de Bruno. O país parecia era
ter falta de pão, como dizia o Sérgio, e não de saudade, como adiantava o
Pascoaes. Só hoje, em função daquilo que se passa no mundo, uma delapidação
suicida de espécies e de recursos, é que nós entendemos a força das ideias
saudosistas, quando elas insistem em olhar para o passado, apontando a
necessidade de o salvaguardar e fazendo disso o primeiro imperativo moral da
humanidade. Então, Sérgio ou Pascoaes? Decerto, que hoje, ao contrário de
ontem, cada vez mais Pascoaes e menos Sérgio, apesar da atenção que as ideias
deste merecem. Nós já percebemos que estamos num ponto da civilização em que a
falta de atenção pelo passado, e pelo património natural e humano que lá se
inclui, se está a tornar numa perda irreparável e suicidária. Logo, quando
Pascoaes fala do passado naquele tempo é uma coisa, quando se fala do passado
hoje é outra. E aqui, Paulo, entra uma ideia chave, a ideia de progresso, que é
por excelência a noção social do António Sérgio da época.
PAL - Sem qualquer dúvida...
ACF
- É a ideia que vem da razão iluminista dos séculos XVII e XVIII, a ideia que
está na base do desenvolvimento económico da revolução industrial do séculos
XVIII e XIX e a ideia que fundamenta a geração de 70, e a crítica que esta
geração faz à sociedade portuguesa; é também a ideia de base do pensamento de
António Sérgio e dos seareiros em geral. Acrescente-se que na altura era quase
impossível questionar o progresso; quem é que se arriscava no início da República
a fazer causa contra o progresso? Só mesmo o Pascoaes, com o pano de fundo
dialéctico que o Bruno lhe deu. Até o Pessoa escreveu aquelas odes triunfais à
electricidade e à mecânica, que são uma coisa hoje mais que datada, se não
ridícula. O progresso era para todos eles, à esquerda ou à direita, a panaceia
para salvar o mundo; e daí as afinidades de Integralistas e Seareiros, que
ainda chegaram a colaborar entre si. Ora, no século XXI, nós não encaramos mais
o progresso dessa forma. Temos cada vez mais uma noção exacta das contradições
malignas que o progresso encerra.
PAL - Sim, mas de qualquer maneira essa forma
mental continua a dominar. Ainda ontem ouvi uma entrevista do Presidente da
República, na TV Cabo, parece não despertar audiência nos canais tradicionais,
afirmando que a panaceia está na inovação e na produtividade. Ora, não
colocando em causas essas necessidades, tem de se salientar que não há cultura
nem espírito no seu discurso, nem preservação do património, nada disso existe.
ACF - Aquilo que
talvez valha a pena lembrar, é que o Jorge Sampaio é um resultado da Seara Nova
e do pensamento de Sérgio, naquilo que ele tem de bom e de mau. Portanto não é
uma surpresa que ele exponha essas ideias. Agora também é preciso saber
contextualizar um discurso de Jorge Sampaio, enquanto Presidente da República,
em função das determinantes da política internacional; e nós sabemos que a
política internacional, sobretudo quando orientada pelos Estados Unidos,
continua dominada por uma ideia muito ingénua e nociva de progresso. O que fica
em causa é a necessidade de mudar de paradigma, de abandonar um modelo de
progresso linear e exponencial. Precisamos de um novo paradigma que nos faça
olhar para o passado e nos obrigue a preservá-lo. O progresso é o futuro, mas
neste momento o que percebemos é que sem passado não podemos ter futuro.
Portanto, há aqui um novo modelo social a nascer que põe em causa o progresso
simples, de uma só dimensão, tal como Antero e Sérgio ainda o entendiam. Ora o
que eu queria dizer há pouco, quando adiantei que o Pascoaes era um dos que
teve razão antes do tempo, é que ele, Pascoaes, tem, pela primeira vez, numa
altura em que isso parecia prematuro, uma ética da salvaguarda e da conservação
da natureza. É importante que se diga que esta ética não exclui, de modo
nenhum, no saudosismo, uma ética da liberdade humana». In Paulo Alexandre Loução, A Alma
Secreta de Portugal, Ésquilo Edições & Multimédia, 2004, ISBN 972-860-515-3.
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