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O
nascimento da camaleoa
«(…) Entre 1807 e 1835, os
escravos realizariam mais de duas dezenas de conspirações e revoltas, mantendo os
seus senhores em estado permanente de alerta. Os hauçás começaram, em 1809, e
repetiram a dose aliando-se aos nagós, em 1813. Depois aconteceu o ataque à
capital, Salvador, por seiscentos negros saídos das armações, onde trabalhavam
na fabricação e conserto de embarcações, e de propriedades próximas a Salvador,
contavam os jornais: eles começaram na armação de Manuel Inácio e seguiram pelo
sítio de Itapoá até ao Rio de Joanes com o desígnio de irem incorporando-se com
os dos mais engenhos e armações. E gritavam liberdade, vivam os negros e seus
reis..., e morram os brancos e mulatos. Eram cruéis e matavam as mulheres e os
moleques que se recusavam a acompanhá-los. Em 1814, irrompeu uma insurreição em
Santo Amaro do Ipitanga. No ano mesmo do nascimento de Luísa, lambeu o fogo da
revolta em localidades como Lagoa, Itatinga, Caruaçu, Guíba, Cassaran-gongo,
Quibaca, Cabaxi e Poucoponto. As condições para tais levantes não podiam ser
melhores: as ideias liberais tinham enfraquecido grupos de senhores antes
fervorosos defensores da metrópole, Portugal. As dissidências entre portugueses
e brasileiros tinham aumentado. A classe militar baiana, encarregada da ordem, estava
num abatimento só. Ou seja, eram tempos em que os senhores estavam na defensiva.
Tinha-se muito medo do que os escravos faziam e do que ainda poderiam vir a
fazer. Luísa cresceu ouvindo falar em poderosos rituais de candomblés, cenário
para o que as autoridades entendiam como crime de feitiçaria.
Neles, comentava-se, se
preparavam malefícios e calundus ao som de danças com requebros. Cantos em
idiomas africanos varavam, muitas vezes, as noites e, nas ruas de Salvador, a
menina ouvia falar dialectos incompreensíveis. Ela também via, da janela do
sobrado ou nas esquinas, os jogos de capoeira animados por batuques. As negras
de dentro gostavam de pendurar ao pescocinho dos pequenos ioiôs, como então se
chamavam as crianças pequenas, amuletos e fetiches, juntando búzios e dentes de
jacarés às medalhinhas de Nossa Senhora. Em casa, temiam-se as que sabiam rezar
o mau-olhado e o quebranto. Sussurrava-se sobre o amansa-sinhô, veneno com que
os escravos, sobretudo os de nação mandinga, intoxicavam os senhores, tornando-os
abúlicos. Não poucas vezes, ela viu negras que saíam pela casa afugentando os
maus espíritos com raminhos de arruda.
No
engenho, a menina se impressionava com o poder dos negros que, por meio de
rezas fortes, faziam cair o bicho das bicheiras ou livravam os canaviais das lagartas.
E ela ouvia os pais falarem, com indignação, dos senhores que tratavam mal,
castigavam e levavam escravos ao suicídio. A menina conhecia o vira-mundo, a
gargalheira, o anjinho, o ferro em brasa, instrumentos de castigo aos quais Domingos
tinha verdadeira aversão. Sabia que os traficantes de escravos tinham a sua
irmandade na pequena Igreja de Santo António da Barra e que tinham São José por
padroeiro. Aprendeu com os pais a desprezar os tumbeiros, embarcações que
transportavam cativos da África. A abominar os negros ladradores, nome que se
dava aos que procuravam e capturavam homens e mulheres em terras africanas. E a
se horrorizar com os mercados de escravos que, para a alegria de seu pai, os
ingleses começavam a fechar. A primeira infância da menina transcorreu numa época
em que um debate dividia as autoridades locais. Maior coerção ou maior tolerância
em relação aos escravos? O conde dos Arcos, último vice-rei do Brasil, achava
que o apelo dos senhores a repressão era uma confissão de culpa: eles eram
conscientes dos maus-tratos que infligiam aos escravos e temiam retaliações.
Muitos senhores, diferentemente de Domingos, davam tratamento desumano aos
seus. Nestes engenhos, eles trabalhavam até morrer, eram mal alimentados,
punidos com rigor, coibidos nos seus momentos de lazer e, por isso, se
rebelavam. O conde dos Arcos e Domingos achavam que a escravidão em si
provocava revolta. Por isso, o melhor remédio contra a rebeldia colectiva era deixar
que os campos da Graça e do Barbalho fossem pontos de reunião, batuques, danças
e festas. Acreditavam que as celebrações e divertimentos africanos na verdade
representavam o sossego das senzalas. Ambos permitiam que os seus escravos
liberassem a energia que podia explodir na forma de rebeliões. Além disso, livre
da pressão, cada nação africana se fecharia em torno dos seus próprios deuses e
costumes, evitando alianças». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A
Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.
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de Objetiva/JDACT