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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Era um dos boatos mais
comuns da época, alimentado pelos ingleses para tentarem cair nas boas graças
da população. Como todos os bons boatos, era credível, pois Hitler não
controlava o Atlântico, e Portugal podia ser importante para ele vencer a
Inglaterra. Mas, em Fevereiro de 41, já era evidente que os desejos de Hitler
não incluíam a invasão da Península Ibérica. A célebre Operação Félix,
preparada em 1940, e só mais tarde conhecida do público, tinha sido colocada de
parte pelo estado-maior nazi. Hitler e Mussolini tinham, em Espanha como em
Portugal, regimes amigos. Invadi-los seria pura perda de tempo e recursos.
Alimentar o boato da invasão nazi era, pois, propaganda inglesa, e só o
imprudente James Bowles continuava a sua preparação para uma operação que nunca
aconteceria. Explosivos?, perguntei. Sabes, o James é um militar. Acha que só
assim se defende um território.
Mary cerrou os olhos e mexeu-se
subitamente na cadeira, como se quisesse livrar-se de um pensamento mau.
Depois, o seu sorriso reapareceu e mudou de assunto: ouvi dizer que estás
noivo... Confirmei com um aceno de cabeça, e esbocei um sorriso que não
escondia o meu incómodo. Normalmente sentia-me embaraçado a discutir o tema com
mulheres inglesas. No fundo, tentava separar os meus dois mundos, o português e
o inglês, pois isso dava-me mais liberdade nas conquistas amorosas. Mas Mary
não largou o isco: noivo de uma portuguesa, menina de boa família, muito
importante no regime. Michael tinha sido o arauto do meu noivado. Acrescentava
uma pitada de sal à história, notando que o Jack Gil se vai casar com uma
portuguesa, cujo pai é amigo do Salazar e já foi ministro. Nada disto era
inocente. A intenção era óbvia: afastar um potencial rival das belas secretárias
da Embaixada, Rose, Analise e Linda. Como se isso me retirasse de circulação. Pelos
vistos, o efeito era o oposto. O tom jocoso de Mary, que a princípio
interpretei como crítica, era afinal a manifestação de um forte interesse
feminino.
E já a conheces bem?, perguntou
ela. Sim, temos conversado muito. Mary deu nova gargalhada: pobre Jack Gil, só
tens conversado? Isto, vindo de uma mulher casada, àquela hora e em casa dela,
não podia deixar de me perturbar. A Carminho e eu, cumprindo os costumes
portugueses, apenas passeávamos de mãos dadas há quase um ano. E o casamento
nem sequer estava marcado. O que achas que eu podia fazer com ela?, perguntei,
sabendo que pisava terrenos escorregadios. Jogos, respondeu Mary. Jogos
perigosos. O que teria acontecido se me tivesse ido embora? Deitado na cama do
meu quarto no Hotel da Lapa pergunto-me porque não o fiz. Sei a resposta:
aquilo estava-me a excitar, é óbvio. Nós, homens, somos animais sempre e, se
sentimos a fêmea disponível, é preciso muito para recuar! Mesmo o receio de ser
descoberto não me estava a conter. Afinal, Mary era uma mulher importante. E o
coronel, bolas, o coronel Bowles era o chefe do SOE! Se eu me metesse com ela,
o marido ia saber no dia seguinte! Jogos perigosos, é verdade. Não me apetecia
nada ter o SOE à perna. Ainda por cima com comunistas e explosivos por perto.
Mas não me fui embora. Não era da minha natureza. E além disso, momentos depois
e saltando de assunto mais uma vez, coisa muito comum nela, Mary mudou a minha
vida com uma frase.
Preciso da tua ajuda, Jack Gil. Se
essa frase não tem sido proferida, talvez nunca tivesse existido o Jack Gil,
espião inglês nos tempos de Salazar. Talvez eu tivesse ido para a América, ter
com o meu pai. Talvez eu tivesse casado com a Carminho, tornando-me um bom
português, pai de família e sócio do Benfica. Mas aquele preciso da tua ajuda
foi determinante, para sempre um marco na minha existência. Até porque, para o
justificar, Mary revelou a sua tremenda capacidade de contadora de histórias,
daquelas que nos comovem e nos afastam da indiferença». In Domingos Amaral, Enquanto
Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.
Cortesia
de CdasLetras/JDACT