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A urna estava vazia, pura, imaculada, mas não havia na sala um só eleitor, um
único para amostra, a quem pudesse ser exibida. Talvez algum deles ande por aí
perdido, lutando com as enxurradas, suportando as chicotadas do vento,
apertando contra o coração o documento que o acredita como cidadão com direito
a votar, mas, tal como estão as coisas no céu, vai tardar muito a cá chegar, se
é que não acaba por voltar para casa e deixar os destinos da cidade entregues
àqueles que um automóvel preto vem deixar à porta e à porta depois virá
recolher, cumprido o dever cívico de quem o ocupava no banco de trás. Terminadas
as operações de inspecção dos diversos materiais, manda a lei deste país que
votem imediatamente o presidente, os vogais e os delegados dos partidos, assim
como as respectivas suplências, desde que, claro está, estejam inscritos na
assembleia eleitoral cuja mesa integram, como era o caso. Mesmo a fazer render
o tempo, quatro minutos bastaram para que a urna recebesse os seus primeiros
onze votos. E a espera, não havia
outro remédio, começou. Ainda meia hora não tinha passado quando o presidente,
inquieto, sugeriu a um dos vogais que fosse espreitar a ver se vinha alguém, se
calhar apareceram eleitores, mas deram com o nariz na porta que o vento havia
fechado, e logo se foram dali a protestar, se as eleições tinham sido adiadas,
ao menos que tivessem a delicadeza de avisar a população pela rádio e pela
televisão, que para informações dessas ainda servem. Disse o secretário, Toda a
gente sabe que uma porta que se feche atirada pelo vento faz um barulho de trinta
mil demónios, e aqui não se ouviu nada. O vogal hesitou, irei não irei, mas o
presidente insistiu, Vá, faça-me o favor, e tenha cuidado, não se molhe. A
porta estava aberta, firme no seu calço. O vogal pôs a cabeça de fora, um
instante foi suficiente para olhar a um lado e a outro, e logo para recolhê-la
a escorrer como se a tivesse metido debaixo de um duche. Desejava proceder como
um bom vogal, agradar ao seu presidente, e, sendo esta a primeira vez que havia
sido chamado a funções, queria ser apreciado pela rapidez e eficiência nos
serviços que tivesse de prestar, com o tempo e a experiência, quem sabe, alguma
vez chegaria o dia em que também ele presidisse a uma assembleia de voto, voos
mais altos que este têm cruzado o céu da providência e já ninguém se admira.
Quando ele regressou à sala, o
presidente, entre pesaroso e divertido, exclamou, Homem, não era preciso
deixar-se molhar dessa maneira, Não tem importância, senhor presidente, disse o
vogal enquanto enxugava o queixo à manga do casaco, Conseguiu ver alguém, Até
onde os meus olhos alcançaram, ninguém, a rua é como um deserto de água. O
presidente levantou-se, deu uns passos indecisos diante da mesa, foi até à
câmara de voto, olhou para dentro e voltou. O delegado do p.d.m. tomou a
palavra para recordar o seu prognóstico de que a abstenção dispararia em
flecha, o delegado do p.d.d. pulsou outra vez a corda apaziguadora, os
eleitores tinham todo o dia para votar, deviam estar à espera de que o temporal
amainasse. Já o delegado do p.d.e. preferiu ficar calado, pensava na triste
figura que estaria a fazer se tivesse deixado sair pela boca fora o que se
dispunha a dizer no momento em que o suplente do presidente entrou na sala,
Quatro miseráveis gotas de água não é coisa que chegue para amedrontar os
votantes do meu partido. O secretário, para quem todos olharam à espera, optou
por apresentar uma sugestão prática, Creio que não seria má ideia telefonar ao
ministério a pedir informações sobre como está a decorrer o acto eleitoral aqui
e no resto do país, ficaríamos a saber se este corte de energia cívica é geral,
ou se somos os únicos a quem os eleitores não vieram iluminar com os seus
votos. Indignado, o delegado do p.d.d. levantou-se, Requeiro que fique exarado
na acta o meu mais vivo protesto, como representante do partido da direita,
contra os termos desrespeitosos e contra o inaceitável tom de chacota com que o
senhor secretário acaba de se referir aos eleitores, esses que são os supremos
valedores da democracia, esses sem os quais a tirania, qualquer das que existem
no mundo, e são tantas, já se teria apoderado da pátria que nos deu o ser. O
secretário encolheu os ombros e perguntou, Tomo nota do requerimento do senhor
representante do p.d.d., senhor presidente, Opino que não será caso para tanto,
o que se passa é que estamos nervosos, perplexos, desconcertados, e já se sabe
que num estado de espírito assim é fácil dizer coisas que na realidade não
pensamos, tenho a certeza de que o senhor secretário não quis ofender ninguém,
ele próprio é um eleitor ciente das suas responsabilidades, a prova está em
que, como todos os que nos encontramos aqui, arrostou com a intempérie para vir
aonde o dever o chamava, no entanto, este reconhecimento sincero não me impede
de rogar ao senhor secretário que se atenha ao cumprimento rigoroso da missão
que lhe foi consignada, abstendo-se de qualquer comentário que possa chocar a
sensibilidade pessoal e política das
pessoas presentes. O delegado do p.d.d. fez um gesto seco que o presidente
preferiu interpretar como de concordância, e o conflito não foi além, para o
que fortemente contribuiu ter o representante do p.d.m. recordado a proposta do
secretário, Na verdade, acrescentou, estamos aqui como náufragos no meio do
oceano, sem vela nem bússola, sem mastro nem remo, e sem gasóleo no depósito,
Tem toda a razão, disse o presidente, vou ligar para o ministério. Havia um
telefone numa mesa afastada e para lá se dirigiu levando a folha de instruções
que lhe havia sido entregue dias antes e onde se encontravam, entre outras
indicações úteis, os números telefónicos do ministério do interior». In
José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, Editorial Caminho, Lisboa, 2004, ISBN
978-972-211-608-8.
Cortesia
de ECaminho/JDACT