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O
Factor Bellucci
«(…) Agora, olhando para trás, não
tenho dúvidas em dizer que foi um erro. E também não tenho a menor dúvida de
que foi um daqueles erros muito, mas mesmo muito difíceis de evitar. A beleza de
Cátia, a excitação, o sabor a vitória, tudo isso foi inebriante nos dias
subsequentes à grande queca. Andava extasiado com a enormidade da minha
conquista. Quer dizer, não se tratava apenas de uma mulher vulgar, gira, engraçadinha,
por quem nos entusiasmamos e pode ou não acontecer irmos parar à cama dela, se
não travarmos a tempo e dissermos, tenho que ir para casa senão a minha mulher
mata-me. Reparem, a alcunha de Cátia no banco era Bellucci, isto não vos diz
nada? Claro que os tipos mais ressabiados referiam-se a ela como a burra da Bellucci,
mas todos sem excepção adorariam estar no meu lugar, se soubessem, evidentemente.
Cátia não era burra, o problema de Cátia, que me favoreceu no início e me
tramou no final, era a solidão. Parece um paradoxo, mas se virmos melhor não é
assim tão estranho. Cátia nascera abençoada por uma beleza acima da média,
podia ter-se tornado modelo internacional, actriz de cinema, apresentadora de
televisão, enfim, podia ter alcançado a fama e a fortuna, mas isso não
acontecera talvez por não ter vocação para nenhuma dessas profissões ou, simplesmente,
porque nunca fora descoberta. Cátia vivia sozinha em Lisboa, longe da família e
dos amigos e tinha um emprego banal. Era bonita, mas tímida e sem o menor jeito
para usar a seu favor essa vantagem, para a esmifrar o melhor possível. Em última
instância, a beleza só lhe trazia contrariedades, pois intimidava os homens e
afastava-os e aguçava a inveja das mulheres. A solidão de Cátia tornou-a tão
dependente de mim que começou a ser asfixiante. Sabem quando adoramos uma música
linda que, a partir de certa altura, de tanto a ouvirmos passamos a achá-la
enjoativa? Pois, já vejo sobrolhos levantados, não foi o melhor exemplo, Cátia
era uma pessoa, não era uma música nem uma lata de Coca-Cola que deitamos fora
quando já não nos apetece mais. Mas que a relação com ela transformou-se num
problema de grandes proporções, isso é um facto indesmentível. E que eu não a
amava, também. Eu adorava o conceito, ter um caso com a mulher mais bonita do
banco, e como tal não queria abrir mão dela, mesmo sem saber o que fazer com
ela. Andava baralhado e a afundar-me num problema que acabou por deixar-me numa
situação impossível. Cátia não foi a única. Como se estivesse empenhado em
complicar ainda mais a minha vida, comecei a sair com outra mulher. Havia um
certo deslumbramento a conduzir as operações.
Apesar de todas as dificuldades,
do cansaço, de me distrair das responsabilidades do meu novo cargo no banco,
que me solicitava disponibilidade e concentração totais, eu era um homem novo,
ou melhor, eu era como um jovem exuberante a descobrir as possibilidades da
vida, a descontracção em pessoa, caminhando em cima do arame. Poder-se-ia dizer
que eu entrara na crise dos quarenta, só que tudo isto estava a acontecer-me nos
meus trinta e cinco, de modo que, se era esse o caso, eu tinha-me adiantado cinco
anos. Mas, a avaliar pelos sintomas, era mesmo a crise dos quarenta. O meu
filho acordara-me de uma longa letargia com a força de um murro na barriga, e
no nariz do colega dele, e eu assustara-me com aquilo em que estava a
transformar-me. O tempo estava a correr e eu, acomodado, tinha parado algures,
não sabia bem onde. Os sintomas: o meu casamento não era bom nem mau,
simplesmente não me incomodava, a minha mulher já não se esforçava para me seduzir
e eu gostava dela mas não me entusiasmava com ela. O emprego era isso, só um emprego,
um mal necessário, um lugar onde passava os dias fazendo o menos possível para
não morrer de fome. Nada de carreira cheia de stress, nada de pedalar a
duzentos por cento para marcar a diferença, para ultrapassar a malta toda e ser
considerado o próximo tipo a promover. Em casa preferia adormecer no sofá em
frente à televisão; no banco preferia bater as teclas do computador com dois
dedos, fitando o ecrã como um sonâmbulo». In Tiago Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha
Vida, 2003, Edições ASA, 2016, ISBN 978-989-233-501-8.
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