Cortesia
de wikipedia e jdact
A
Via Láctea
«(…)
O oficial começou a olhar para o peregrino com outros olhos e Maurício aumentou
a tensão que já tomava conta do ambiente, dirigindo-se ao detective: haverá
mais mortes, e o senhor pode ser uma das vítimas, se a sua investigação puser
em risco a missão do assassino. O abade começou a rezar em voz alta. E porque a
sua vida não corre risco? Era mais fácil matar-me do que o espanhol e o padre.
Estive sozinho e isolado em várias situações. Também não vejo interesse em
matarem um brasileiro aqui, quando lá no Brasil seria simples e não despertaria
suspeita. Mas agora, se me permitem, gostaria de seguir a sugestão do
comandante e continuar a minha peregrinação. Com um gesto de reverência para as
autoridades, dirigiu-se para a porta, em passos cadenciados, como se nada
houvesse acontecido. Ia pensando nesse crime sem explicação em que o moribundo
enviara uma mensagem. Veio-lhe à lembrança a estranha figura daquele peregrino
forte, com um cajado maior que o normal, andando apressado. Se fosse o
assassino, estava dirigindo-se a Roncesvalles. Mas para quê? Matar um padre em
condições tão arriscadas? Não parecia lógico.
Não resistiu à tentação de olhar
para trás, quando chegou perto da porta. O que viu o deixou intrigado. Os
policiais e o comandante estavam entretidos com o inquérito, mas o abade
lançava sobre ele um olhar de súplica, com a testa franzida e a mão direita no
bolso da batina. Fitaram-se por alguns minutos. O detective parou de examinar
papéis e o comandante estava por perguntar porque ele não ia embora logo, mas
percebeu a cena. Em vez de sair, voltou-se e caminhou lentamente até ao padre.
O próprio escrivão não se atreveu a mexer nos papéis ou nos objectos da mesa do
inquérito para não quebrar o silêncio perturbador. Maurício aproximou-se do
superior da irmandade e apenas estendeu a mão direita. O comandante teve
ímpetos de segurar o religioso para que ele não tirasse do bolso uma arma que
pudesse ter às escondidas, mas o abade estava visivelmente tenso, aturdido e
suava. Contemplou por pouco tempo a mão estendida por aquele estrangeiro, em
quem passara a confiar mais do que nas autoridades do seu país, e lentamente
tirou do bolso uma folha de papel dobrada.
Maurício pegou-a e entregou ao
comandante, sem ler, porque era um documento que deveria ser visto antes pelas
autoridades policiais, e estas é que decidiriam se ele poderia ou não conhecer
o conteúdo. O comandante já estava prestes a explodir, e agora com razão, mas
se conteve diante da atitude correcta de Maurício, e tomou o papel às pressas
da sua mão. Olhou feio para o padre e dirigiu o seu olhar furibundo para
Maurício, que apenas o encarou respeitosamente. O detective quebrou as tensões
fortes do momento com apenas uma palavra: comandante!, e estendeu a mão. O
comandante não teve pressa e ficou olhando para o papel, como se fosse noutra
língua. Depois de alguns minutos, sem fazer comentários, entregou-o ao detective,
que o leu com o rosto sombrio e passou-o a Maurício, perguntando em seguida: o
senhor entende de charadas? Em vez de responder, Maurício começou a estudar o
papel em voz alta. Folha de bloco, tinta vermelha, letra de calígrafo. Olhou
para o abade: isso, suponho, estava na cama do padre Augusto. O senhor acha que
foi deixado pelo criminoso, não é? O abade benzeu-se com tanta força, que quase
bateu as mãos no nariz. Estava vermelho e tremia. O comandante poderia ter
ficado quieto, mas tinha o vício da autoridade: isso parece óbvio, o senhor não
acha? E agora? O que o senhor me diz de ele não ter vindo aqui para matar
padres, se deixou uma mensagem no corpo do padre, que assassinou com tanta
crueldade?
O
detective interrompeu o comandante: o senhor poderia explicar esse seu
comentário sobre o papel e a letra? Papel de bloco. Sugere que vamos receber
outras mensagens do mesmo tipo. Tinta vermelha. Não gosto disso. Normalmente
escreve-se em azul. O vermelho sugere sangue. Ficou em silêncio como se
pensando no que poderia acontecer, mas o comandante interrompeu seus
presságios: e o senhor acha que ele é um calígrafo? Se for isso, é só
descobrirmos os calígrafos do país. Maurício levantou a cabeça e deu uma
resposta perturbadora: é muito difícil identificar o autor de uma letra
artificial. O senhor sabe disso. A tecnografia compara letras para verificar se
elas são do mesmo punho que escreveu o modelo levado para exame. Quando a
escrita é comum, o trabalho é simples. Não sei se me fiz entender». In AJ
Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN
978-856-150-127-3.
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