quinta-feira, 12 de março de 2020

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Dirigimo-nos a uma das casas e entrámos. Passámos largos minutos a vasculhar, até descobrirmos um armário com roupas, de homem e de mulher…»

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«(…) O árabe abriu um grande sorriso, levou a mão ao bolso das calças e mostrou-me umas moedas. Suspirei, com algum alívio: não é muito, mas já é alguma coisa. E Santamaria ter faca..., acrescentou ele. Com a faca e o dinheiro, as nossas possibilidades de fuga aumentavam. Observei a azáfama no interior da Sé e comentei: que confusão, cada vez chega mais gente. Um homem dirigia as operações de ajuda, executadas por um grupo de padres e frades. Ao examinar melhor a sua cara, descobri que era monsenhor Sampaio, o patriarca de Lisboa. Recordava as suas homilias, anos atrás. Ir conhecer ele?, perguntou Muhammed. Sim, respondi, mas ele não me conhece. Ainda por cima, assim vestidos, vai perceber que somos presos e chama os soldados. Muhammed mostrou-se preocupado: então, melhor nós ir fugir! Tínhamos de sair dali. Dirigimo-nos à saída principal, e foi nesse momento que se deu o terceiro abalo, aterrador como os outros, embora mais curto. A Sé abanou e ouviu-se um clamor, pois muitos pensaram que tinha chegado a sua hora. De cócoras, encostados a uma parede, Muhammed e eu esperámos que o tecto nos caísse em cima, o que não aconteceu. Vimos, do lado oposto da igreja, um desmoronamento, mas foi tudo. Mais uma vez, a antiga Sé romana resistiu. Porém, as pessoas descontrolavam-se, em pânico. Algumas levantavam-se e corriam, caíam ao chão, voltavam a levantar-se e tornavam a correr, saindo à pressa da igreja. Outras, ajoelhadas, erguiam os braços ao alto e berravam: misericórdia, misericórdia!!!
Muhammed e eu aproveitámos o alarido para sair por uma porta lateral da igreja. Na rua, nas redondezas, uma enorme nuvem de poeira quase nos cegou. O árabe espirrou e tossiu, antes de afirmar: pó ir queimar garganta, ir precisar água... Também eu estava cheio de sede, com a boca e a língua e a garganta ásperas. Inesperadamente, uma memória veio-me ao espírito. Há muitos anos, num domingo, viera à missa à Sé, seguindo uma rapariga formosa. Conversara com ela junto a uma fonte, enquanto outras mulheres enchiam os cântaros de água e os homens tagarelavam. Há uma fonte aqui perto, disse. Só preciso de me lembrar para que lado era... Dirigimo-nos à porta principal da Sé, para me situar, e visualizei o local da fonte. Apontei nessa direcção, mas o árabe disse-me, preocupado: cão Negro ir andar ali, nós não ir. Bufei, chateado. Ele tinha razão. Devíamos ir rio, ir fugir, sugeriu. Eu sei. Mas sem água vai ser difícil.
Então, o árabe olhou para uns prédios em frente, que ainda estavam de pé, e declarou: casas ter água. Abanei a cabeça: não, não depois do que aconteceu... Não deve haver uma vasilha que tenha resistido. Temos mesmo de ir à fonte... Estás com medo, rato? O árabe irritou-se: Muhammed não ter medo! Insultei-o, a rir: mentiroso. És um rato medroso e foi por isso que fugiste e não me ajudaste! Só pensavas era no cu do francês! A expressão no rosto dele mudou, passando de séria a divertida. Deu uma gargalhada: Santamaria ter mania, Santamaria só falar disso! Coloquei um ar indignado: eu?! Tu é que és assim! Alá fez-te ao contrário e, em vez de gostares de mulheres, gostas é de franceses bonitinhos! Parei e rimo-nos de novo, bem-dispostos, e depois ficámos em silêncio, apenas sorrindo e compreendendo, dentro de nós, a sorte que havíamos tido, pois estávamos vivos e a dizer piadas. Quando esse efeito passou, o árabe perguntou: Santamaria ir fugir de Lisboa ou ir ficar? Recordei a petição que enviara a Sebastião José e que ficara sem resposta, e depois revelei o meu sentimento: já passaram muitos anos, ninguém se lembra de mim aqui. Se me apanharem, prendem-me outra vez. E a ti também. Melhor fugir, afirmou o árabe. Apontou de seguida para as casas que haviam resistido: ir procurar roupas novas? Sorri: o árabe tinha boas ideias. Dirigimo-nos a uma das casas e entrámos. Passámos largos minutos a vasculhar, até descobrirmos um armário com roupas, de homem e de mulher. Brinquei com Muhammed: as de homem para mim, as de mulher para ti! Bem-disposto, Muhammed pegou num vestido e colocou-o à sua frente, como se o provasse a ver se lhe servia, e começou a dançar, divertido, imitando os trejeitos de uma prostituta numa estalagem de Tortuga. Rimo-nos. Por momentos, senti a nostalgia das nossas viagens de piratas, e saudades daquelas bailarinas sempre disponíveis a troco de umas moedas. Muhammed pigarreou, numa voz rouca e desagradável: soy una vieja putana, se me quieres vien... Dei uma gargalhada: o árabe era um comediante talentoso, sempre me haviam divertido as suas pantominas. Embalado, virou-se de costas para mim, desceu as calças e abanou o seu rabo branco à minha frente, enquanto trauteava: yo soy para ti, vien, vien! Explodi numa sonora gargalhada e atirei-lhe com os sapatos ao rabo. Mais surpreendido do que irritado, parou a sua exibição e enfrentou-me: que passar? Gritei-lhe: pára com isso, velho palerma, temos de mudar de roupa! Fingiu-se ofendido, como uma donzela: Santamaria muito sério, Santamaria nunca ir folgar...» In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT