sexta-feira, 24 de abril de 2020

A Biblioteca Perdida. A. M. Dean. «O rapaz não respondeu, ignorando a persistência de Al, mas finalmente colocou o livro de volta na mesa. Ajeitando o casaco, voltou-se para o investigador com um ar de eficiência burocrática»


Cortesia de wikipedia e jdact

9H30
«(…) Acho que temos três aqui, confirmou o rapaz, indicando as folhas queimadas na lixeira. Não entendo, disse Al. O velho leva um tiro no corredor, mas consegue vir cambaleando de volta ao seu gabinete, até à sua mesa. Há um telefone bem à sua frente, mas ele não pega. Não pede socorro. Com papel e canetas por todo lado, não escreve nada. Em vez disso, abre um livro de ilustrações, arranca umas páginas e as queima. Não faz sentido. O rapaz não respondeu. Pegando o livro, examinou-o com uma intensidade que superava a frustração que Al estava sentindo. Ele ficou olhando, furioso. Olha, rapaz, disse Al. Não ouvi o seu nome. Eu nunca o vi por aqui antes. Faz tempo que está nas Cidades? A maioria dos investigadores das Cidades Gêmeas de Minneapolis e Saint Paul, o centro do serviço policial na parte sul do estado, conheciam-se pelo menos de vista. Não sou daqui. Foi tudo o que ele disse. O jovem não ofereceu mais nenhuma informação, nem deu sinal de desejar continuar com aquelas cortesias profissionais. Virou mais uma vez o livro nas mãos, olhando para o papel queimado na lixeira. Al não estava tão disposto a encerrar o assunto. Não é daqui? Você é estadual? O que a polícia estadual está fazendo aqui? Esse caso é evidentemente municipal. Maldita polícia estadual.
O rapaz não respondeu, ignorando a persistência de Al, mas finalmente colocou o livro de volta na mesa. Ajeitando o casaco, voltou-se para o investigador com um ar de eficiência burocrática. Pela primeira vez desde que tinham começado a conversar, ele olhou directamente nos olhos de Al. Sinto muito. Já tenho o bastante para o meu relatório. Prazer em conhecê-lo, detective. Seu relatório? A observação foi quase exagerada. Um livro e um punhado de papel queimado significavam alguma coisa em termos materiais, mas não eram o suficiente para um relatório. Al olhou em torno da sala observando o burburinho: coletas de amostras de impressões digitais, manchas de sangue, respingos, pegadas. Tudo aquilo daria um relatório. E apesar disso o rapaz parecia ignorar todo o resto, dedicando sua atenção apenas à mesa e ao papel queimado na lixeira. Como se todo o resto da cena do crime não existisse. Não era um comportamento normal de investigação, mesmo para um policial estadual. Voltou-se novamente para o agente desconhecido, pronto para uma tirada sarcástica, mas viu-se sozinho na sala.

9H35
A questão que me preocupa é, se um de nossos colegas foi atacado e morto bem aqui no campus, quem será o próximo? Já que os seus colegas tinham saído para ministrar as suas aulas, Emily ficou sozinha no seu gabinete ponderando sobre os estranhos contornos da conversa que haviam tido. As palavras de Emma Ericksen permaneciam na mente de Emily. Não eram apenas as perguntas sem resposta associadas com o assassinato de Arno Holmstrand que contribuíam para o incómodo receio que sentia. Era também a nefasta presença da própria morte. Houve um assassinato, de um colega, a poucos metros de distância de seu escritório. Será que havia um perigo maior? Estariam todos em risco? Será que eu estou? Emily afastou o pensamento assim que ele lhe ocorreu. Encarar a situação em termos pessoais era irracional e só iria nutrir seu medo. Teria de combater os seus pensamentos fugidios com uma actividade: trabalho, e as poucas tarefas que ela ainda precisava fazer antes de deixar o campus e viajar ao encontro de Michael.
Baixou, enfim, os olhos para a pilha de correspondências que havia retirado do escaninho; naquele momento, era o que havia de mais imediato para distrair seus pensamentos perturbadores. Lixo, lixo, lixo. Emily tinha adquirido a reputação de não apanhar a sua correspondência e o motivo era exactamente esse. A correspondência de quase duas semanas, e a maior parte era lixo. Um envelope de uma editora, anunciando um livro que com quase toda a certeza jamais leria. Uma circular sobre a conscientização dos direitos dos animais, cópia exacta da circular que recebera sobre o mesmo assunto na semana passada, e na semana anterior. Um comunicado informando a sua nova senha para a máquina copiadora do departamento, que a secretária anunciava com a mesma gravidade e importância que mereceria a publicação de códigos de activação da reserva nuclear do país. A vida académica podia ser intelectualmente estimulante, mas cheia de adrenalina é que não era. Emily jogou o comunicado, juntamente com os outros papéis, na lixeira.
Em baixo deles havia um único envelope cor de creme, feito de um papel texturizado que eraobviamente caro. O nome de Emily estava harmoniosamente escrito sobre ele, mas não havia selos nem indicação do remetente. Alguma coisa nele chamou a atenção de Emily. Observou a caligrafia elegante em que o seu nome estava escrito. As letras eram de uma tinta marrom e tinham os evidentes arcos e volteios característicos de uma caneta-tinteiro. Emily virou o envelope e observou a superfície em branco. Não havia selos, nem indicação de quem o enviara. Alguém havia deixado o envelope no escaninho dela pessoalmente». In A. M. Dean, A Biblioteca Perdida, 2012, Editora Prumo, 2012, ISBN 978-857-927-298-1.

Cortesia de EPrumo/JDACT