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«(…) Estavam sozinhos, mas o irmão olhou mesmo assim à sua volta e respondeu num sussurro: não
digas a ninguém, mas tenho para mim que o alcaide se deveria render! Achas que
seria mais seguro? Pelo menos ele estaria assim em condições de negociar com o
rei português e talvez este prescindisse do saque. De qualquer maneira,
teríamos que entregar tudo. Ficaríamos sem nada? Claro. E seríamos expulsos da
nossa casa, como é costume. E é isso que te dá esperança?! O tio Yussuf
ajudar-nos-ia a recomeçar as nossas vidas..., em Batalyaws. Aischa olhou-o em
silêncio e exalou depois: em Batalyaws, com o tio Yussuf! São esses então os
planos do pai? São. Desde que Alá Altíssimo nos permita sair daqui vivos! Aischa
acordou com o chamamento do muezim para a oração da manhã, ao nascer do sol.
Custou-lhe a levantar-se, depois do sono curto, mas não queria perder uma única
oportunidade de rezar. Não o fazia só para suplicar a Alá que protegesse a sua
família nestes tempos difíceis. Havia outros assuntos que a atormentavam e lhe pesavam na
consciência. Receava viver em pecado, por esconder de seu pai a existência da
cruz de esmeraldas... Mas não só! Pouco depois da morte de Zubaida, Aischa
encontrara uma chave da porta da casa entre as coisas da mãe, o que a espantou.
A única mulher autorizada a possuir uma chave dessas era Tarube, a primeira
esposa do mercador. De resto, havia sempre criados ou escravos em casa e,
depois do anoitecer, nenhuma mulher estava autorizada a sair, sem o fazer na
companhia de pelo menos um dos homens da família.
Aischa lembrou-se então de um
acontecimento de há vários anos. Cassima, a segunda mulher de Malik Ibn Danaf,
acusara Zubaida de frequentar missas cristãs em segredo, na igreja de Santa
Maria de Alcamim. Zubaida negara tal comportamento diante do marido, que aliás
não conseguia imaginar que à mulher fosse possível escapulir-se de casa. Mesmo
assim, revistara os pertences dela, sem contudo encontrar a chave ou qualquer
outro objecto suspeito. Uma das mulheres mentira. Mas quem? Na altura, Aischa
pensou que Cassima levantara, por inveja, falsos testemunhos... Até que
encontrou a chave! Mas se Zubaida realmente conseguira de vez em quando
ausentar-se de casa sem ninguém notar, a fim de exercer tal
pecado, levara o segredo para o túmulo, pois nem na sua última conversa com a
filha o confessara.
O
primeiro impulso de Aischa tinha sido ir ter com o pai e dar-lhe a chave. Mas perguntou-se:
valeria a pena manchar a memória de sua mãe para sempre? A verdade não seria
nunca descoberta, pois, embora alimentasse a suspeita, a chave não provava que
Zubaida tivesse assistido às missas. Por outro lado, Cassima, já de si cheia de
presunção, sentir-se-ia vencedora e essa satisfação Aischa não lha queria dar. A
jovem escondera o objecto polémico no seu cofrezinho de marfim trabalhado,
junto com as suas jóias. Mas a consciência pesava-lhe e, sempre que rezava,
pedia a Alá compreensão e misericórdia, para si e para a sua falecida mãe.
Lembrava o Todo-Poderoso de que fora a infelicidade de Zubaida que a levara a
cometer certas excentricidades. Assim se juntou Aischa naquela manhã às outras
mulheres. Com a mesquita transformada em hospital, rezava-se em casa, o que não
apresentava grande problema para os muçulmanos. O mais importante era que o
lugar das rezas, assim como o próprio corpo, estivessem limpos. As mulheres
começaram com as lavagens rituais: rosto, mãos, antebraços e pés. Depois, ajoelharam-se sobre os tapetes, viradas a leste, e
curvaram-se, até a cabeça tocar o chão, enquanto murmuravam: Allahu Akbar! Alá
é grande. Não há outro Deus a não ser Alá e Maomé é o Seu enviado e Profeta!
Quantas
vezes Konrad se vira regressar rico e poderoso à sua terra, um cavaleiro
imponente, segurando as rédeas da sua montada garbosa, recompensado pelo seu
próprio rei? Sorriu amargamente, pois havia semanas que se limitava a ser uma
toupeira na semi-escuridão, vivendo com o medo permanente de ser enterrado
vivo. Apesar de os homens irem escorando o túnel com traves de madeira, os
desabamentos faziam parte da ordem do dia. Os cemitérios dos cruzados cresciam.
O rei português até lá mandara construir capelas, onde todos os dias se rezaria
pelas almas dos mortos.
Konrad
dava graças a Deus por Johann ter sido escalado para trabalhar à entrada do
túnel: recolhia a terra e transportava-a até ao atoleiro preparado. Era, sem
dúvida, um trabalho pesado. Mas estava-se em fins de Setembro, o sol já não
queimava tanto e labutar ao ar fresco sempre era melhor do que entupir os
pulmões de terra húmida, à luz de umas velas raquíticas». In
Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN
978-989-809-261-8.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT