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O
Sapateiro Santo
«(…)
Poderíamos embarcar numa nau para a Índia propôs Jorge...,
ou
para a Flandres..., acrescentava Luís. Não antes de..., disse o rei, mas Telo
disse: Savachão atalhou, quer mortificar-se mais ainda. Dentro de dias, o
cardeal presidirá no mosteiro dos Jerónimos à cerimónia solene..., das minhas
exéquias. Pensarão todos que serão de corpo ausente, mas eu quero que sejam de
corpo presente... De um sei eu que desconfia disso adiantou Jorge. Quem? Ouvi-o
contar há dias a dois frades que pararam junto de mim. O sermão fora
encomendado a frei Miguel dos Santos, provincial da ordem dos eremitas de Santo
Agostinho... Conheço. Foi pregador de minha avó, a rainha..., suspendeu-se,
olhando aos lados, e num sussurro terminou: dona Catarina. Alguém o avisou em
segredo: Olhasse como pregava. O rei era vivo e havia de o ouvir. O pregador,
enfiado, deu parte a dom Henrique do que passava e que assim não haveria de
pregar. O cardeal mandou logo o corregedor Diogo Fonseca tirar devassa do que
se por aí diz... Devassa? Andam a tirar devassa? Sim, confirmou João. E parece
que não apareceu ninguém que jurasse ter-te visto morrer..., ter visto o rei
morrer na batalha..., que não seria fácil conhecê-lo depois de morto, dois dias
passados, despido... Ainda vestidos e frescos, eram desconhecidos de pais e de
filhos os que acabavam de morrer, quanto mais cobertos de pó, suor e sangue,
talhados de feridas, inchados ao ardor do sol, desfigurados... Nem se achara no
campo ou em mão de mouros insígnia sua, coisa do seu corpo, fáceis de
reconhecer pelas guarnições de armas reais e até nas fivelas dos sapatos...
O
caso é que, continuou Jorge, frei Miguel afirmava que só pregaria se ordenasse
o sermão com tal arte que nem desse o rei por vivo nem por morto. O cardeal
despachou-o e entregou o encargo ao padre Luís Álvares da Companhia de Jesus.
Muito me contais, disse Savachão. Por mais que me custe, é meu propósito
assistir a essas exéquias. Savachão, disse Telo, folga de remexer na ferida que
está a sangrar. Se não quereis assistir, ficai ao largo. Eu assistirei.
Uma
noite, pela Betesga saíram a Santa Justa. Zona de tavernas, malandros, rufias e
mulheres da vida. Esse rei que tanto admiras, João segundo disse Telo a Savachão,
quando príncipe, gostava de se escapar da alcáçova pela calada da noite a ter
amores com as rameiras. E rixas, bem sei, disse Savachão. Não o imitei nisso...
Olhou o amigo, hesitando em vestir de voz o pensamento. Olhou os outros, que
seguiam à frente, distanciados para que o grupo não desse nas vistas, e enfim
perguntou: e tu? Alguma vez te escapaste a experimentar amores por estes
sítios? Acenou Telo que sim, sem adiantar palavra, lembrado de que o rei,
segundo se dizia, ainda não conhecera mulher. Leu-lhe o pensamento Savachão,
que desabafou: sempre tive medo de apanhar alguma doença..., o morbo serpentino...
A conversa levou Telo a voar a outro lado: e agora? O cardeal como é que... As
minhas culpas não têm perdão, disse Savachão. Porque não morri eu? Jorge
tinha-se deixado aproximar e ouviu estas palavras. Ainda estás a tempo de tudo
remediar, disse.
Não,
não!, respondeu Savachão com violência. Já há outro rei alçado sobre a minha
morte. Quando Afonso quinto regressou de França ao reino, o príncipe João, que
havia sido alçado rei, ajoelhou-se aos pés do pai a restituir-lhe o trono. Não
é a mesma coisa. Pode ser, se tu quiseres. Cala-te, cala-te. Deixa-me estar
morto. Meu tio há-de pedir ao papa licença, há-de casar e dar herdeiro ao
reino, verás... Casar, ele?, disse Telo. Mesmo que o papa conceda a licença das
ordens, como poderá ele...? Da sombra de uma esquina surgiram súbito cinco
embuçados de negro, as lâminas das espadas a cintilarem ao luar. As vossas
bolsas, vá, depressa disse uma voz rouca. Como um raio, Jorge abriu a capa de
mendigo, na mão fino sabre desembainhado, a cota de malha a reluzir-lhe no
peito: a mim, vilões!, e investia». In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
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