quinta-feira, 30 de abril de 2020

Melo Antunes. Maria Manuela Cruzeiro. «Marx e todos os malditos, digamos assim, para o regime, por meio de livros que eram emprestados, ou então através de livreiros que tinham sempre por baixo do balcão..., uma encomenda...»


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O Sonhador Pragmático
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Quais eram os autores que, nessa fase dos quinze-dezasseis anos, mais o terão marcado a esses vários níveis?

Bem, repare, eu não os poderei citar todos, mas penso que, no plano literário, foi sobretudo a literatura portuguesa que me começou a entusiasmar. Depois, e penso que mais ou menos nessa época, comecei a ler muitos autores franceses, desde, por exemplo, Voltaire e Rousseau (que já os lia aos dezasseis-dezassete anos), passando depois para uma grande parte dos filósofos do século XIX, etc. Poderia dizer, portanto. que as minhas primeiras influências vêm dos iluministas, incluindo, portanto, uma série de outros pensadores e filósofos. Nessa fase ainda não tinha lido Marx nem Engels, só o fiz um pouco mais tarde. Mas eu misturei um pouco a literatura e a filosofia…, enfim, é um pouco isso quer dizer, são leituras algo anárquicas. Contudo, eu tinha uma ideia muito clara, tinha um fio condutor muito claro na minha cabeça, e, portanto, foi possível não me dispersar excessivamente. O que interessa referir é que quando chego aos dezoito anos há aí um impasse, porque eu queria seguir um curso de letras, de história, de filosofia (naquela altura havia um curso de histórico-filosóficas), mas o meu pai não confiou que isso pudesse corresponder à salvação da minha alma...

E muito menos às expectativas e aos projectos que ele teria para si...

Claro. De modo que achou que a única coisa que me deveria disciplinar seria seguir a carreira militar, e eu acabei por ceder, até porque isso era uma forma de me autonomizar mais rapidamente. E foi assim.

Foi uma negociação?

Sim, houve uma certa negociação, sem dramas excessivos, mas fiquei sempre com essa mágoa dentro de mim e por isso também fiz o meu curso, na Escola do Exército, sem grande empenhamento. É verdade, sem me empenhar excessivamente...

Continuando paralelamente as suas leituras...

...Sim, empenhando-me fortemente nas minhas leituras. Já estava nessa altura em Lisboa e, portanto, tinha um contacto paralelo com a universidade, com muita gente que a frequentava...

Lembra-se de alguém com quem tenha estabelecido um contacto mais íntimo, através de conversas, discussões, debates, que eram muito mais frequentes na altura do que agora?

Dessa altura, dos meus vinte anos, não me recordo de ninguém em especial...

...que o tenha marcado particularmente.

... Estou a lembrar-me agora, de repente, de um, acho que é o Fernando Pernes, que é hoje, suponho eu, presidente da Fundação de Serralves ou pelo menos está nessa fundação, com quem tive contacto estreito. Mas havia muitos outros cujos nomes já foram ficando diluídos, digamos assim.

Sei que também chegou a frequentar algumas aulas na Faculdade de Letras...

Fui a algumas e depois, mais tarde, também em Direito, mas essa proximidade com a universidade, para mim, só tinha uma função: estar a par da bibliografia, de algumas orientações pedagógicas que me interessavam, ter acesso a algumas sebentas. Lembro-me de uma que me encantou na altura e que estudei profundamente (mas isso também tem a ver com os meus vícios intelectuais no que respeita à literatura clássica), a sebenta do padre Manuel Antunes. E tudo isso influiu, há um conjunto muito vasto de coisas que me foram influenciando decisivamente. Também na altura, já começava, aqui em Lisboa, a ser mais fácil absorver outro tipo de literatura. Portanto, já por volta dos meus vinte anos tinha acesso a toda a chamada literatura proibida, Marx e todos os malditos, digamos assim, para o regime, por meio de livros que eram emprestados, ou então através de livreiros que tinham sempre por baixo do balcão..., uma encomenda...» In Maria Manuela Cruzeiro, Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Editorial Notícias, 2004, 2005, ISBN 972-461-563-4.

Cortesia de ENotícias/JDACT