Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Cambridge estava ansiosa por ser
vista abrindo os seus portões para o mundo moderno da igualdade. Com o meu
fardo de triplo infortúnio, escolinha local, menina, campo de estudo masculino,
era certo que eu ia ser aceite. Se, contudo, eu me matriculasse em letras lá (o
que jamais foi a minha intenção; o bispo sempre foi fraco em detalhes), ia ter muito mais dificuldade. Dali a uma semana a minha
mãe falou com o director da escola. Eles empregaram na tarefa certos
professores escolhidos que usaram todos os argumentos dos meus pais além de
alguns próprios, e é claro que eu tive que ceder. Então abandonei a minha
ambição de cursar letras em Durham ou Aberystwyth, onde tenho certeza de que
teria sido feliz, e acabei indo para o Newnham College, em Cambridge, para
aprender na minha primeira aula, que aconteceu no Trinity, o quanto eu era
medíocre em matemática. O meu primeiro semestre deixou-me deprimida e quase
abandonei o curso. Uns meninos palermas, sem a bênção de um charme pessoal ou
de qualquer outro atributo humano como a empatia e a gramática gerativa, primos
mais inteligentes dos bobos que eu tinha destruído no xadrez, ficavam me
encarando enquanto eu lutava com conceitos que eles achavam óbvios. Ah, a
serena senhorita Frome, um professor exclamava sarcasticamente quando entrava
na sala dele toda terça de manhã. Sereníssima. A de olhos cerúleos! Ó, vinde
iluminar-nos! Era mais do que claro para os meus professores e colegas que
eu não podia ter sucesso ali precisamente porque era uma mulher bonita de
minissaia, com cabelo louro caindo em cachos pelos ombros. A verdade era que eu
não podia ter sucesso ali porque era quase igual ao resto da humanidade, não
tão boa assim em matemática, não
naquele nível. Fiz o que pude para conseguir uma transferência para letras,
inglês ou francês ou até para antropologia, mas ninguém me quis. Naquele tempo
as regras eram seguidas à risca. Para encurtar uma história comprida e infeliz,
eu baixei a cabeça e no final acabei formando-me sem nenhum louvor.
Se eu passei correndo pela minha infância e adolescência,
então certamente vou condensar o meu tempo de aluna de graduação. Eu nunca saí
para remar, com ou sem um gramofone à corda, nem visitei o espectáculo de
revista das Footlights, teatro me deixa sem jeito, nem fui presa nas
manifestações da Garden House. Mas eu perdi a virgindade no primeiro semestre,
várias vezes seguidas, parecia, já que na época todo mundo adoptava um estilo
caladão e desajeitado, e tive uma agradável sucessão de namorados, seis ou sete
ou oito ao longo dos nove semestres, dependendo das definições de carnalidade
que considera. Eu fiz um punhado de boas amizades entre as mulheres do Newnham.
Joguei ténis e li livros. Totalmente graças à minha mãe, eu estava estudando o
assunto errado, mas não parei de ler. Eu nunca tinha lido muita poesia ou peças
de teatro na escola, mas acho que os romances davam mais prazer a mim que aos
meus amigos da universidade, que eram obrigados a suar para dar conta de
ensaios semanais sobre Middlemarch ou Feira das vaidades. Eu passava correndo por esses mesmos livros,
jogava conversa fora sobre eles, talvez, se houvesse alguém por ali que
conseguisse tolerar o meu nível básico de discurso, e aí seguia em frente. Ler
não era o meu jeito de pensar em matemática. Mais que isso (ou será que eu
quero dizer menos?), era o meu jeito de não pensar.
Eu disse que eu era rápida. The
Way We Live Now em quatro tardes deitada na cama! Eu dava
conta de um bloco de texto ou de um parágrafo inteiro num só gole visual. Era
questão de deixar os olhos e os pensamentos escorrerem, como cera, para tirar
uma impressão fresquinha da página. Para irritação dos que ficavam em torno de
mim, eu virava a página de poucos em poucos segundos com um gesto impaciente do
pulso. As minhas necessidades eram simples. Eu não prestava muita atenção em
temas ou frases especialmente bem resolvidas e pulava belas descrições de
clima, paisagens e interiores. Eu queria personagens em que pudesse acreditar,
e queria que me deixassem curiosa sobre o que iria acontecer com eles. De
maneira geral, eu preferia que as pessoas estivessem ou no começo ou no fim de
uma paixão, mas não fazia muita diferença se elas tentavam outras coisas pelo
caminho. Era vulgar admitir, mas eu gostava que alguém dissesse Case comigo no fim. Os romances sem
personagens femininos eram um deserto sem vida. Conrad eu nem levava em
consideração, assim como a maioria
dos contos de Kipling e Hemingway. E também não me impressionava com
reputações. Eu lia tudo que me caísse na frente. Literatura vagabunda, elevada
e tudo que ficasse no meio,
tudo era tratado da mesma maneira brusca». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012,
ISBN 978-853-592-121-2.
Cortesia da CdasLetras/JDACT