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Medina.
Janeiro de 627
«(…) Maomé conduziu-me por entre
o aglomerado em direcção à entrada da mesquita. Como num mosaico, os seus
rostos rodopiaram perante mim: Hamal, de duplo queixo, a gritar, com um rosto
cor de ameixa, e a sua pálida mulher, Fazia-Transformada-em.-Jamila; a coscuvilheira
da cidade, Umm Ayman, a contrair os lábios enrugados; Abu Ramzi, o ourives, a
exibir anéis de ouro nos punhos que agitava. Eu esperara murmúrios quando
regressasse, e testas franzidas, mas aquilo? Pessoas que me tinham conhecido
durante toda a vida queriam agora despedaçar-me. E Safwan..., virei a cabeça para
o procurar, mas ele desaparecera. Como sempre.
Dedos rudes puxaram-me o cabelo.
Gritei e afastei-os aos bofetões, e uma torrente de cuspo aterrou-me no braço.
Maomé poisou-me no chão e encarou a multidão, depois ergueu as mãos no ar. O
silêncio caiu como uma mortalha, a abafar até os olhares.
A’isha precisa de descansar,
disse Maomé. A voz dele soava tão fatigada quanto eu me sentia. Regressem, por
favor, às vossas casas.
Envolveu-me com um braço e
entrámos na mesquita. As minhas esposas-irmãs encontravam-se junto da entrada
para o pátio, em grupos de duas. Sawdah apressou-se para a frente, a ulular, a
envolver-me na sua gordura. Louvou al-Lah pelo meu regresso em segurança,
depois beijou o amuleto para afastar o mau-olhado. De seguida, Hafsa
aproximou-se, a chorar, a beijar-me o rosto e as mãos. Sussurrou: pensei que te
tinhas perdido para sempre. Não lhe disse que estava quase certa. Umm Salama
assentiu, sem sorrir, como se temesse que a cabeça lhe pudesse cair da longa
haste que era o seu pescoço . Zaynab semicerrou olhos lascivos ao olhar para Maomé,
como se estivessem sozinhos na sala.
Mas as preocupações do meu marido
eram apenas comigo. Quando o meu estômago me voltou a apertar, submergindo-me
na dor, apanhou-me e levantou-me como se eu estivesse cheia de ar. E na
verdade, pouco mais me restava no interior. Flutuei nos seus braços até aos meus
aposentos. Ele abriu a porta com um pontapé e carregou-me para o interior,
depois voltou a pôr-me de pé enquanto desenrolava a minha cama. Encostei-me à
parede, grata pelo silêncio, até que o grito de Umar irrompeu pelo quarto,
seguido pelo seu dono. Vê como ela envergonha o sagrado Profeta de al-Lahl,
exclamou. A galopar pela cidade com as mãos em cima de outro homem e o cabelo a
sacudir-se como o vestido de uma meretriz.
Uma meretriz com um hálito a
feder a vómito e cabelo como um ninho de aves?, disse bruscamente. Por favor, Umar,
disse Maomé. Não vês que ela está doente? Estraga-la com mimos. Estou
satisfeito por ver que está viva, louvado seja al-Lah. O amor no olhar do meu
marido fez-me corar. Como estivera perto de o trair com aquele vigarista! Safwan
atraíra-me com a liberdade, depois prendera o meu destino aos seus desejos. Tal
como qualquer outro homem. Excepto, talvez, Maomé. Yaa habibati, que recompensa
devo oferecer a Safwan ibn al-Mu'attal por te trazer até mim em segurança?
Cem
chicotadas seria o adequado, resmungou Umar. Mas Safwan salvou-lhe a vida. Parece
que Umar acha que eu devia ter sido deixada à mercê dos chacais..., ou dos
beduínos, respondi. Pelo menos, morrerias com a tua honra intacta. Não
aconteceu nada à honra de A’isha, replicou Maomé». In Sherry Jones, A Jóia de
Medina, 2008, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2009, ISBN original
978-0-8253-0518-4, ISBN 978-972-421-891-3.
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