quarta-feira, 6 de maio de 2020

Inês. Maria João Fialho Gouveia. «No paço dos Albuquerques, os dias passavam devagar. Havia largos meses que o filho, Afonso, partira com a família para a corte castelhana, onde assumira o cargo de alferes-mor de seu primo…»

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As Encostas de Albuquerque
«(…) Nessa tarde, ao regressar da sua caminhada pelo burgo, dona Inês trazia consigo uma novidade: um gatinho de meses, pardo e tigrado, acolhido no regaço das suas vestes cor dos campos estivais. Sem delongas, correu a mostrá-lo à prima, certa da sua aprovação, pois que já antes lhe permitira acolher animais. Mas um gato era uma estreia. Senhora minha prima! Senhora minha prima!, clamou. Eis-me aqui. Mas o que me trazes tu hoje! Um gatito?, constatou, sem mais dizer. Um gatito, sim, dona Teresa. No Egipto são sagrados, diz o moçárabe Araão Ben Bakr, barbeiro do povoado. Bem sei quem é o senhor Bakr. Mas deixemos essas tontices de divindades. O gato fica. Fará companhia ao meu. Instruirei Mencía que lhe leve o que comer ao teu quarto. Assim já tens um novo amigo, rematou a insigne fidalga, procurando esconder um sorriso de divertimento. Grata. Grata, senhora minha prima. Vá. Basta. E em abalando daqui, vais quedar-te a rezar uma Ave-Maria, para pedir perdão pelas heresias de evocar os deuses egípcios. Mas adiante. Que nome porás ao gatito, já pensaste? Já, pois. Será dom Beltrão!, revelou, com um sorriso a inundar-lhe o rosto. E a que vem tal escolha? É o nome..., começou, hesitando. Sim, o nome de...? De um menino do burgo, concluiu, enrubescida. Do filho de dom Pelayo Nuñez. Ora, ora, Inês, esse jovem não te rima em grandeza, censurou a senhora de Albuquerque. Oh, sei-o bem. É só um nome. É só um nome. Eles nem são parecidos, defendeu, arrebatando à prima uma valente gargalhada e selando a aprovação da graça sugerida. E o nome também ficou.

No paço dos Albuquerques, os dias passavam devagar. Havia largos meses que o filho, Afonso, partira com a família para a corte castelhana, onde assumira o cargo de alferes-mor de seu primo, Afonso XI. Casara cedo, o jovem, aos dezanove anos, com a fidalga luso-castelhana, de ascendência francesa, Isabel Teles Meneses, décima senhora de Meneses e sua prima materna, de quem teve um filho, Martim Gil, em 1325. A avó raramente via o neto, dada a distância para a sede do reino, onde se tinham instalado as cortes. Afonso Sanches morrera havia dois anos, nesta mesma alcáçova, tendo sido sepultado em Portugal, no Convento de Santa Clara de Vila do Conde, que com a mulher fundara. Restavam assim, apenas, dona Teresa e a pequena Inês, que se entretinham ora mergulhadas em afazeres, bordando panos e toalhas sacras, ora recordando os feitos do senhor da casa, com a leitura e a declamação dos seus escritos.
Afonso Sanches fora escritor. Homem de superiores saberes, herdara do pai, o monarca português Dinis I, a alma poética e os dotes de trovador. Essas mesmas parecenças com o carácter paterno teriam ditado a predilecção do monarca por este seu filho, o que gerara a inveja e a fúria do legítimo herdeiro do trono vizinho. Que se ao bastardo não minguavam cultura, poesia e inteligência, o príncipe herdeiro era dominado pelo rancor, pela vanglória e pela ignorância. Não era, pois, de estranhar que o pai experimentasse especial estima pelo seu filho ilegítimo. Inês gostava muito de revisitar a história do amor do Rei Poeta pelo seu filho natural, as guerras incendiadas que este despertara, e como o seu primo estivera a dois passos de ser rei de Portugal. Nos dias mais frescos, quando a tarde escurecia cedo, murcha e prematura, mãe e filha, assim viam a sua relação, sentavam-se frente ao imenso fogão da sala grande, cujas brasas os criados se esforçavam por manter acesas (ajuntando pinhas e toros e bufando o fole), para contar e ouvir contar, uma vez mais, como tantas antes, a vida de Afonso Sanches». In Maria João Fialho Gouveia, Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN 978-989-884-372-2.

Cortesia de Topseller/20/20 Editora/JDACT