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As
Encostas de Albuquerque
«(…) Nessa tarde, ao regressar da
sua caminhada pelo burgo, dona Inês trazia consigo uma novidade: um gatinho de
meses, pardo e tigrado, acolhido no regaço das suas vestes cor dos campos
estivais. Sem delongas, correu a mostrá-lo à prima, certa da sua aprovação,
pois que já antes lhe permitira acolher animais. Mas um gato era uma estreia. Senhora
minha prima! Senhora minha prima!, clamou. Eis-me aqui. Mas o que me trazes tu
hoje! Um gatito?, constatou, sem mais dizer. Um gatito, sim, dona Teresa. No
Egipto são sagrados, diz o moçárabe Araão Ben Bakr, barbeiro do povoado. Bem
sei quem é o senhor Bakr. Mas deixemos essas tontices de divindades. O gato
fica. Fará companhia ao meu. Instruirei Mencía que lhe leve o que comer ao teu
quarto. Assim já tens um novo amigo, rematou a insigne fidalga, procurando
esconder um sorriso de divertimento. Grata. Grata, senhora minha prima. Vá.
Basta. E em abalando daqui, vais quedar-te a rezar uma Ave-Maria, para pedir
perdão pelas heresias de evocar os deuses egípcios. Mas adiante. Que nome porás
ao gatito, já pensaste? Já, pois. Será dom Beltrão!, revelou, com um sorriso a
inundar-lhe o rosto. E a que vem tal escolha? É o nome..., começou, hesitando. Sim,
o nome de...? De um menino do burgo, concluiu, enrubescida. Do filho de dom
Pelayo Nuñez. Ora, ora, Inês, esse jovem não te rima em grandeza, censurou a
senhora de Albuquerque. Oh, sei-o bem. É só um nome. É só um nome. Eles nem são
parecidos, defendeu, arrebatando à prima uma valente gargalhada e selando a
aprovação da graça sugerida. E o nome também ficou.
No paço dos Albuquerques, os dias
passavam devagar. Havia largos meses que o filho, Afonso, partira com a família
para a corte castelhana, onde assumira o cargo de alferes-mor de seu primo, Afonso
XI. Casara cedo, o jovem, aos dezanove anos, com a fidalga luso-castelhana, de
ascendência francesa, Isabel Teles Meneses, décima senhora de Meneses e sua
prima materna, de quem teve um filho, Martim Gil, em 1325. A avó raramente via
o neto, dada a distância para a sede do reino, onde se tinham instalado as
cortes. Afonso Sanches morrera havia dois anos, nesta mesma alcáçova, tendo
sido sepultado em Portugal, no Convento de Santa Clara de Vila do Conde, que
com a mulher fundara. Restavam assim, apenas, dona Teresa e a pequena Inês, que
se entretinham ora mergulhadas em afazeres, bordando panos e toalhas sacras,
ora recordando os feitos do senhor da casa, com a leitura e a declamação dos
seus escritos.
Afonso Sanches fora escritor.
Homem de superiores saberes, herdara do pai, o monarca português Dinis I, a
alma poética e os dotes de trovador. Essas mesmas parecenças com o carácter
paterno teriam ditado a predilecção do monarca por este seu filho, o que gerara
a inveja e a fúria do legítimo herdeiro do trono vizinho. Que se ao bastardo
não minguavam cultura, poesia e inteligência, o príncipe herdeiro era dominado
pelo rancor, pela vanglória e pela ignorância. Não era, pois, de estranhar que
o pai experimentasse especial estima pelo seu filho ilegítimo. Inês gostava
muito de revisitar a história do amor do Rei Poeta pelo seu filho natural, as
guerras incendiadas que este despertara, e como o seu primo estivera a dois
passos de ser rei de Portugal. Nos dias mais frescos, quando a tarde escurecia
cedo, murcha e prematura, mãe e filha, assim viam a sua relação, sentavam-se
frente ao imenso fogão da sala grande, cujas brasas os criados se esforçavam
por manter acesas (ajuntando pinhas e toros e bufando o fole), para contar e
ouvir contar, uma vez mais, como tantas antes, a vida de Afonso Sanches». In
Maria João Fialho Gouveia, Inês, 2016, Topseller, 20/20 Editora, 2016, ISBN
978-989-884-372-2.
Cortesia de Topseller/20/20
Editora/JDACT