Cortesia
de wikipedia e jdact
Nápoles.
Novembro de 1749
«O
rangido parecia bem distante, mas ainda assim foi o suficiente para
despertá-lo. Não era tão forte a ponto de acordar alguém que dormisse
profundamente, mas, a bem da verdade, há anos ele não dormia bem. Era como se
fosse um ruído de metal roçando contra uma pedra. Podia não ser nada. Um ruído
insignificante. Um dos servos levantando-se mais cedo para começar o dia antes
dos outros. Talvez. Por outro lado, podia ser algo ruim. Como uma espada.
Arranhando acidentalmente uma parede. Tem alguém aqui. Ele se sentou, ouvidos
atentos. Tudo ficou absolutamente quieto por um instante. Então, ouviu outra
coisa. Passos. Subindo sorrateiramente os frios degraus de pedra. No limiar de
sua consciência, mas sem dúvida estavam lá. E se aproximavam. Ele pulou da cama
e foi até à porta que conduzia à pequena varanda do outro lado da lareira.
Puxou a cortina para o lado, abriu silenciosamente a porta e saiu, se
esgueirando, para o ar cortante da noite. O Inverno estava se aproximando
rapidamente, e seus pés descalços se enregelaram ao tocar o chão frio de
pedras. Inclinando-se sobre o parapeito, olhou para baixo. O pátio do palácio
estava uma escuridão total. Fixou o olhar, buscando um reflexo, o vislumbre de
um movimento, mas não conseguiu perceber qualquer sinal de vida lá em baixo.
Não havia cavalos, carruagens, camareiros ou servos. Do outro lado da rua e
mais além, percebia-se com dificuldade o esboço das outras casas, realçadas
pelos primeiros clarões da alvorada que despontava por trás do Vesúvio. Ele já
havia assistido várias vezes a outros nasceres do sol atrás do vulcão,
acompanhados pelo sinistro rastro de fumaça. Era uma vista inspiradora e
majestosa, que quase sempre lhe trazia consolo quando nada mais o fazia. Mas
essa noite era diferente. Podia sentir algo estranho no ar.
Voltou correndo para dentro e vestiu-se, sem perder tempo em
abotoar a camisa. Havia coisas mais urgentes. Precipitou-se para a cómoda,
abrindo a primeira gaveta. Seus dedos tinham acabado de se fechar em volta do
cabo do punhal quando a porta do quarto se abriu violentamente e três homens
entraram. As espadas estavam desembainhadas. À luz oscilante das brasas
morrendo na lareira, pôde ver também que o homem do meio empunhava uma pistola.
A luz foi suficiente para que o reconhecesse. E soube instantaneamente do que
se tratava. Não faça nada de que possa se arrepender, Montferrat, disse o homem
que chefiava o ataque. O homem que atendia pelo nome de marquês de Montferrat
ergueu os braços com calma e afastou-se cuidadosamente da cómoda. Os intrusos o
cercaram, agitando ameaçadoramente as lâminas diante de seu rosto. O que estão
fazendo aqui?, perguntou cautelosamente. Raimondo di Sangro embainhou a espada
e colocou a pistola na mesa. Apanhou uma cadeira e a lançou em direção ao
marquês. Ao atingir uma ranhura do chão, ela caiu ruidosamente. Sente-se,
grunhiu. Creio que isso vai levar algum tempo. Com os olhos fixos em Di Sangro,
Montferrat endireitou a cadeira e sentou-se de maneira hesitante. O que o
senhor deseja? Di Sangro curvou-se em direcção à lareira e, com uma tocha,
acendeu uma lanterna de querosene. Colocou-a sobre a mesa e pegou de novo a
pistola, com a qual acenou para que os homens saíssem. Eles assentiram e
deixaram o quarto, fechando a porta. Di Sangro puxou outra cadeira e sentou-se
em frente à sua presa. O senhor sabe muito bem o que quero, Montferrat,
respondeu, mirando-o ameaçadoramente com a pistola de cano duplo enquanto o
estudava. E pode começar pelo seu verdadeiro nome, acrescentou acidamente. Meu
verdadeiro nome? Vamos deixar de brincadeiras, marquese. Pronunciou a última
palavra de forma debochada, o rosto cheio de condescendência. Conferi suas
cartas de nobreza. São falsas. Na verdade, nenhum dos vagos fragmentos que o
senhor forneceu sobre o seu passado desde que chegou aqui parece ser
verdadeiro.
Montferrat sabia que seu acusador detinha todos os recursos
necessários para fazer essas investigações. Raimondo di Sangro herdara o título
de príncipe di San Severo ao completar 16 anos, após a morte de seus dois
irmãos, e contava com o jovem rei espanhol de Nápoles e da Sicília, Carlos VII,
entre seus muitos amigos e admiradores. Como pude interpretar esse homem tão
mal assim?‖, pensou Montferrat com um horror crescente. Como pude interpretar
tão mal este lugar? Depois de anos de tormento e dúvidas, ele finalmente
abandonara sua busca no Oriente e retornara à Europa menos de um ano antes,
chegando a Nápoles por Constantinopla e Veneza. Não quisera estabelecer-se na
cidade. Seu plano era prosseguir até Messina, tomar um navio para a Espanha e,
talvez, voltar para casa em Portugal. Parou ao pensar nisso. Casa.
Uma palavra destinada aos outros, não a ele. Uma palavra oca,
vazia, que o passar do tempo destituíra inteiramente de qualquer significado. Nápoles
lhe permitira esquecer os pensamentos de rendição. Sob os vice-reis espanhóis,
tinha chegado a ser a segunda cidade da Europa, depois de Paris. Fazia também
parte de uma Europa que ele estava descobrindo, uma Europa diferente da que
deixara para trás. Era uma terra onde as ideias do Iluminismo conduziam os povos
a um novo futuro, ideias que Carlos VII conhecera e alimentara em Nápoles,
concepções que tinham patrocinado o discurso, o aprendizado e o debate cultural.
O rei criara uma Biblioteca Nacional, assim como um Museu Arqueológico, para
conservar as relíquias escavadas nas cidades soterradas recentemente
descobertas, Herculano e Pompeia. O que o fascinava ainda mais era o facto de o
rei ser hostil à Inquisição (maldita),
que fora a maldição da vida pregressa de Montferrat. Cansado da influência dos
jesuítas, o rei os neutralizara com cautela, para não suscitar a ira do papa». In Raymond
Khoury, O Santuário Perdido, 2015, Editorial Presença, Grandes Narrativas,
2015, ISBN 978-972-234-248-3.
Cortesia de EPresença/JDACT