segunda-feira, 22 de junho de 2020

Memorial do Convento. José Saramago. «Quando calha, vem o padre Bartolomeu Lourenço experimentar aqui os sermões que compôs, pela bondade do eco que as paredes têm, o bastante apenas para ficar redonda a palavra…»

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«(…) Uma vez por outra, Blimunda levanta-se mais cedo, antes de comer o pão de todas as manhãs, e, deslizando ao longo da parede para evitar pôr os olhos em Baltasar afasta o pano e vai inspeccionar a obra feita, descobrir a fraqueza escondida do entrançado, a bolha de ar no interior do ferro, e, acabada a vistoria, fica enfim a mastigar o alimento, pouco a pouco se tornando tão cega como a outra gente que só pode ver o que à vista está. Quando isto fez pela primeira vez e Baltasar depois disse ao padre Bartolomeu Lourenço, Este ferro não serve, tem uma racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.
Quando calha, vem o padre Bartolomeu Lourenço experimentar aqui os sermões que compôs, pela bondade do eco que as paredes têm, o bastante apenas para ficar redonda a palavra, sem a ressonância excessiva que encavala os sons e acaba por empastar o sentido. Assim é que deviam soar as imprecações dos profetas no deserto ou nas praças públicas, lugares sem paredes ou que as não têm próximas, e por isso inocentes das leis da acústica, está a graça no órgão que profere a palavra, não nos ouvidos que a ouvem ou nos muros que a devolvem. Porém, esta religião é de oratório mimoso, com anjos carnudos e santos arrebatados e muitas agitações de túnica, roliços braços, coxas adivinhadas, peitos que arredondam, revirações dos olhos, tanto está sofrendo quem goza como está gozando quem sofre, por isso é que não vão os caminhos dar todos a Roma, mas ao corpo. Esforça-se o padre na oratória, tanto mais que logo li está quem o ouça, mas, ou por efeito intimidativo da passarola ou por frieza egoísta dos auditores, ou por faltar o ambiente eclesial, as palavras não voam, não retumbam, enredam-se umas pelas outras, parece impróprio que tenha o padre Bartolomeu Lourenço tão grande fama de orador sacro, ao ponto de o terem comparado ao padre António Vieira, que Deus haja e o Santo Ofício (maldito) houve. Aqui ensaiou o padre Bartolomeu Lourenço o sermão que foi pregar a Salvaterra de Magos, estando lá el-rei e a corte, aqui está provando agora o que pregará na festa dos desponsórios de S. José, que lho encomendaram os dominicanos, afinal não lhe desaproveita muito a fama que tem de voador e extravagante, que até os filhos de S. Domingos o requestam, de el-rei não falemos, que sendo tão moço ainda gosta de brinquedos, por isso protege o padre, por isso se diverte tanto com as freiras nos mosteiros e as vai emprenhando, uma após outra, ou várias ao mesmo tempo, que quando acabar a sua história se hão-de contar por dezenas os filhos assim arranjados, coitada da rainha, que seria dela se não fosse o seu confessor António Stieff, jesuíta, por lhe ensinar resignação, e os sonhos em que lhe aparece o infante Francisco com marinheiros mortos pendurados dos arções das mulas, e que seria do padre Bartolomeu Lourenço se aqui entrassem os dominicanos que o sermão lhe encomendaram, e dessem com esta passarola, este maneta, esta feiticeira, este pregador a burilar palavras e talvez a esconder pensamentos, que esses não os veria Blimunda nem que jejuasse um ano inteiro.
Acaba o padre Bartolomeu Lourenço de dizer o sermão, nem quer saber do seu religioso efeito, só pergunta alheado, Então, gostaram, e os outros depois respondem, Lá isso, gostámos, sim senhor, mas este é um falar dos dentes para fora, que o coração não dá mostras de ter entendido o que ouviu, e se o coração não entendeu, não chega a ser mentira o falar da boca, mas sim ausência. Recomeçou Baltasar a bater nos seus ferros, Blimunda varreu para o pátio os fragmentos de vime que não serviam, pelo empenho pareciam dois trabalhos urgentes, mas o padre disse de súbito, como quem não pode segurar mais uma preocupação, Assim nunca chegarei a voar, disse-o em voz cansada, e fez um gesto de tão fundo desânimo que Baltasar teve a instantânea percepção da inutilidade do que estava fazendo, por isso largou o martelo, mas querendo emendar o que podia ser tomado por renúncia, disse, Temos de construir aqui uma forja, temperar os ferros se não até o peso da passarola os fará vergar, e o padre respondeu, Não se me dá que verguem ou não o caso é que ela voasse, e assim não pode voar se lhe falta o éter». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT