jdact
Nuevo
la vi
«(…)
Boa tempera do aço de alma é a dor. Em poucas horas, de adolescente ferido por
uma contrariedade de amor, me tornei adulto com o sentido da fragilidade que é
a vida deste pobre bicho da terra tão pequeno. Na retina de meus olhos, a
imagem doce, sempre até aí viva e dolorosa, do rosto de Branca Vilhena, vinham
agora sobrepor-se os cruentos vultos de companheiros, amigos e parentes
dilacerados pela tragédia.
Tínhamos
chegado em salvamento a terra, na trégua de mar e vento ao descobrir do sol.
Com presteza se despacharam doze faluas e algumas pinaças a acudir à gente que ficara
no galeão. Muitos, mal aconselhados do medo, nós da praia bem os víamos a lançarem-se
às ondas, a fim de serem aos outros preferidos na salvação, acabando por lhes
ser preferidos na morte.
Apenas
repontou a maré, as vagas novamente investiram com renovada sanha sobre aquele desmantelado
colosso. Os franceses, sem se deixarem vencer do temor, iam acostando as faluas
à capitana e recebendo, como de salto, algumas pessoas e logo, ante o perigo e
com a pressa, se afastavam. Hora de desordem, espanto e confusão. Três ondas
bastaram a sumir horrendamente aquela célebre capitana. Da força do primeiro
mar se romperam as amarras que estavam no fundo, o segundo encostou o buco
sobre os bancos do recife, o terceiro o submergiu nos brevíssimos ais dos
infelizes. Assim se acabou a majestade de tão potentíssimo lenho, da invocação
de três santos, Santo António, São Diogo, São Vicente, que os três
patronos não foram bastantes a mediar diante de Deus as preces dos homens, aquele
que pouco tempo antes, embandeirado de vitórias, singrava paralelos, climas e
meridianos por uma e outra esfera e triunfava de mares, regiões e inimigos. De
longe os montes olhavam entristecidos o ímpeto de tamanhos golpes contra aquele
herói moribundo…
Fora
freixo no alto monte,
verde
e robusto,
tocado
apenas do vento brando,
apenas
embalado pelo canto da fonte.
Tão
soberbo, levanta um dia a fronte.
Parte
do bosque a fazer-se navio.
Luta
com mares e ventos:
colhe
perdas, destroços.
Chora
sua loucura.
De
longe vê a terra,
estende
os braços,
deseja
chegar a ela.
Não
lho consente o mar,
nem
em pedaços!...
Que
estranho me sinto! Um como torpor íntimo que me encortiça a alma, me seca as
lágrimas, me torna insensível à imensa lástima que ali a meus olhos se desenlaça.
Como se eu fosse outro, muito distante, no cérebro a gerarem-se-me rimas para
futuros versos que refervem e se espumam no pensamento... Caio em mim e aflige-me
interiormente não sei se a mofina daqueles desgraçados, se de mim próprio.
Sempre antes do tempo chega a
morte, por mais prevenida. Não escaparam alguns, que a sua hora, escrita no
livro do destino, rematara ali seu prazo ou, no baralho da fortuna, uns saiam mortos,
outros vivos, maculados os olhos e as almas dos que da praia assistíamos ao
calamitoso espectáculo». In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre
Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN 972-290-669-0.
Cortesia de Difel/JDACT