Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) À medida que passava o
tempo, crescia a nossa necessidade de lutar em prol do ideal, a ponto de já não
admitir discussão, e de cavalgar de espora e rédea solta sobre as nossas dúvidas.
De bom ou de mau grado, transformou-se afinal em fé. Entregamo-nos à sua
escravidão, algemamo-nos à sua malta, curvamos o pescoço, para servir a sua santidade
com a máxima devoção. A mentalidade dos escravos humanos comuns é terrível,
porque eles perderam apenas o mundo, e nós entregamos não somente o corpo, mas
também a alma, à voracidade aniquiladora da vitória. Por nossos próprios actos,
fomos esvaziados de moralidade, de vontade e de responsabilidade, como folhas mortas
ao vento.
O batalhar perene eliminou de nós
todo o cuidado com as nossas vidas, e também com a dos outros. Trazíamos cordas
ao redor do pescoço, e, sobre nossas cabeças, pesavam preços que bem mostravam
que o inimigo premeditava submeter-nos a horripilantes torturas, se fôssemos
aprisionados. Todos os dias, um de nós falecia; e os que prosseguiam vivendo
sabiam que eram títeres conscientes no palco de Deus: com efeito, nosso fado
era impiedoso, absolutamente impiedoso, enquanto os nossos pés feridos pudessem
vacilar para a frente, na estrada. Os fracos invejavam os que se haviam cansado
o bastante para morrer; porque o êxito parecia remoto, e o fracasso, próximo e certo,
senão total, afigurava-se-nos como sendo uma libertação da fadiga. Vivíamos sempre
ou em plena tensão, ou em pleno relaxamento de nervos, ora na crista, ora no cavado
das vagas do sentimento. Esta impotência era amarga para nós, e fazia-nos viver
apenas para o horizonte à vista, indiferentes às contrariedades que infligíamos
ou que suportávamos, porque a sensação física se mostrava miseravelmente
transitória. Furacões de crueldade, perversões e cobiças passavam de leve pela
superfície, sem nos perturbar; porque as leis morais, que pareciam constituir,
outrora, barreiras contra tais incidentes disparatados, deviam ser, então,
palavras ainda mais débeis do que as sensações. Viemos a saber que havia angústias
excessivamente agudas, mágoas demasiadamente profundas, êxtases infinitamente
altos para o nosso eu finito, e portanto, impossíveis de serem registados.
Quando a emoção atingia estes píncaros, a mente embotava-se; e a memória
fazia-se branca, até que as circunstâncias voltassem a ser vulgares outra vez.
Semelhante exaltação do
pensamento, enquanto deixava o espírito vaguear, permitindo-lhe pairar por
estranhos ares, fazia-o perder o antigo domínio sobre o corpo. O corpo era
inferior em demasia para sentir o infinito das nossas tristezas e das nossas
alegrias. Portanto, abandonávamo-lo, como a refugo; deixávamo-lo por baixo de nós,
a marchar, mero simulacro respirante, no seu nível desamparado, sujeito a influências
de que, em tempos normais, o nosso instinto se afastaria. Os homens eram jovens
e robustos; a carne e o sangue, quentes, clamavam inconscientemente pelos seus direitos,
atormentando-lhes as entranhas com bizarras aspirações. As privações e os perigos
empanavam o calor viril, sob um clima tão torturante como se possa conceber. Não
tínhamos recinto fechado onde ficar a sós, nem tecidos espessos para ocultar a nossa
natureza. O homem vivia candidamente, em todos os sentidos, com o homem.
O árabe
era, por índole, continente; e o uso do casamento universal quase que abolira
todas as práticas irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas dos raros acampamentos,
que encontramos nos nossos meses de vida errante, nada seriam para o nosso número,
ainda que a sua oferta repugnante fosse saboreável a qualquer homem de organismo
sadio. Tomada de horror perante tão sórdido comércio, a nossa juventude começou
a saciar mutuamente as suas poucas necessidades nos seus próprios corpos limpos,
conveniência fria, que, por via de comparação, se afigurava assexual e até
pura. Mais tarde, alguns passaram a justificar este processo estéril, jurando
que os amigos, palpitando juntos sobre areias movediças, com órgãos íntimos em
supremo arroubo, encontravam, ali, ocultos na escuridão, o coeficiente sensual
de paixão mental capaz de soldar as nossas almas e os nossos espíritos num único
esforço flamejante. Outros, ansiosos por punir apetites que não podiam evitar
de todo, manifestavam orgulho selvagem na degradação do corpo, oferecendo-se a
si próprios para todas as práticas que prometessem sofrimentos físicos ou imundície».
In
T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações
Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.
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