sábado, 18 de julho de 2020

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Eu creio que, em alguns anos, entre Fritz e eu, foram estudadas todas as contendas imagináveis e previsíveis, tanto gerais como locais…»

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«(…) A família dele foi das mais leais à minha e, sobretudo, ao trono, entre outras razões porque, em caso de extinção do nosso sangue, a dele tinha direitos de sucessão reconhecidos num monte de documentos que existiam em duplicado, no arquivo da coroa e no da família Cronstadt. A razão pela qual se chamava assim prende-se com o facto de, nos tempos calamitosos do usurpador Eginardo, eles terem ido para a Rússia e nós para a França; eles serviram a Pedro e nós a Luís; eles ganharam honras e nós quase perdemos a nossa. Se a minha família recuperou, por fim, o trono e a honra, isso deveu-se à ajuda de Cronstadt e não à de nenhum Luís nem à de nenhum Pedro. O que não deixou de ser curioso, isso sim, foi que um tio bisavô de Fritz e um tio bisavô meu se digladiaram pelo amor de Catarina da Rússia e não sei qual deles matou o outro com um tiro. Mas isto aconteceu quando as coisas haviam voltado à normalidade e nós ao trono: assunto de segundões aventureiros e, neste caso, mulherengos. Ambas as famílias se envaidecem de que um dos seus membros tenha ocupado um lugar activo no imenso e superpovoado leito de Catarina; mesmo tratando-se dessa dama, activo será uma mera hipérbole de narrador. Sempre, entre mim e Fritz se tratou desse tema com cortesia e total desprendimento: o que dormiu com Catarina foi o teu tio. Não, Ferdinando, deveras. Estou em condições de assegurar que quem matou foi o teu.
Era muito frequente, naquela época que, quando em alguma corte estrangeira, em alguma estância balnear da moda ou no Casino de Monte Carlo alguém falava mal de mim, depois de me insultar do pior, se acrescentasse: esse idiota do Ferdinando, que não tem mais do que quarenta e nove soldados, apesar de ter, também, uns trezentos oficiais inúteis, dedica-se a brincar às guerras como se fosse o conquistador da Europa, o que era, só em parte, uma calúnia: num dos salões mais amplos do meu palácio, tínhamos reproduzido, em tamanho gigante e em relevo, o mapa da Europa e dos países adjacentes, tendo em conta a velha teoria da tenaz que, então, ainda o era: com todos os pormenores que podiam interessar ao estratega ou servir de referência ao táctico. Tínhamos à vista grandes cartazes com os números dos efectivos militares de todos os países, tanto de mar como de terra, e uma informação fidedigna que nos permitia corrigir números e rectificar posições; tínhamos à mão milhares de soldadinhos de chumbo de todas as armas e de todos os uniformes, que ocupavam posições, as defendiam ou as abandonavam; que formavam frentes de combate e rectaguardas, alas e centros nas grandes batalhas; que marchavam derrotados ou vitoriosos ao longo dos extensos caminhos. Às dez da manhã, todos os dias, Fritz e eu punhamo-nos a jogar: bombardeava a artilharia, carregava a cavalaria, avançava a infantaria, ou vice-versa, segundo de quem se tratasse e, também, segundo a operação que tivesse sido concebida. Eu creio que, em alguns anos, entre Fritz e eu, foram estudadas todas as contendas imagináveis e previsíveis, tanto gerais como locais, com os pormenores das operações e as causas da vitória e da derrota friamente estudadas. Como podiam surpreender-me as etapas prévias da guerra da Águia do Leste com a França, se Fritz me tinha ganho (com grande dor do meu coração, porque prefiro a França)?
Depois, todas as semanas, Fritz redigia um relatório, que eu guardava no meu arquivo mas que, copiado secretamente, chegava às mãos do meu primo, o Águia, pela mala diplomática; tinha-me obrigado àquela despesa e àquele jogo ao inteirar-se de que Fritz, conde ou barão de Cronstadt (agora não me recordo bem), era o melhor estratega do mundo.
O pobre Fritz, cada vez que o meu primo ganhava uma dessas guerras menores que precederam as outras duas verdadeiramente importantes a que deve o seu poder, perguntava-se, angustiado: quem será o oficial do Estado-maior que sabe tanto como eu e que sabe, além disso, o mesmo? Não deixa de ser possível, Fritz, que não seja um oficial do Estado-maior, mas apenas um jornalista. Doravante há que contar com os jornais: costumam saber tanto como os Estados-maiores e, para mais, de outra maneira. Só há um modo de saber a estratégia, e esse homem sabe-a. E não será esse génio quem ele tem destinado para marido da minha filha? Alguém me disse agora que está no estado-maior.
Não me fales dele, Ferdinando! Se esse velhaco soubesse o que eu sei, eu dedicava-me à literatura. Não deixa de ser curioso e um pouco triste que, quando o Águia me destronou, as suas cem aguiazitas entraram no meu país, ornamentadas de belas plumas, viesse à frente delas, como creio ter dito e se ainda não o disse, digo-o agora), Raniero, meu presumível genro. Ninguém se opôs às plumas, talvez porque estivessem reforçadas com espingardas e canhões; mas Fritz opôs-se ao meu genro, sem outra arma que não fosse a sua coragem, sem mais do que um sabre. Pobre estratega! Foi na escadaria do palácio, Fritz ia para cima, e o meu genro vinha para baixo. Tinha que ser vencido Fritz, segundo as suas próprias convicções». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

Cortesia de Difel/JDACT