domingo, 5 de julho de 2020

Trópico de Câncer. Henry Miller. «Hora do crepúsculo. Azul indiano, água de vidro, árvores reluzentes e liquescentes. Os trilhos desaparecem no canal em Jaurés. A comprida lagarta com os lados esmaltados mergulha qual montanha russa»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Felizmente? Sim, felizmente. Imagine-se a espécie humana andando de um lado para outro com um osso espetado. O canguru tem pé… duplo: um para os dias úteis e outro para os feriados. Adormecendo. Uma carta de fémea perguntando se encontrei um título para meu livro. Título? Certamente: adoráveis lésb

Sua vida anedótica! Uma frase do Senhor Borowski. É nas quartas-feiras que almoço com Borowski. Sua esposa, que é uma va… seca, preside. Ela agora está estudando inglês e sua palavra favorita é filthy. Isso permite ver imediatamente como são chatos os Borowski. Mas espere... Borowski usa ternos de tecido aveludado e toca harmónica. Combinação insuperável, especialmente se considerarmos que ele não é mau artista. Faz-se passar por polaco, mas naturalmente não é. É judeu, esse Borowski, e seu pai era um filatelista. Na verdade, quase todo Montparnasse é judeu ou meio-judeu, o que é ainda pior. Há Carl e Paula, Cronstadt e Bóris, Tânia e Sylvester, e Moldorf e Lucille. Todos, com excepção de Fillmore. Henry Jordan Oswald também acabou revelando-se judeu. Louis Nichols é judeu. Até mesmo Van Norden e Chérie são judeus. Francês Blake é judeu ou judia. Titus é judeu. Os judeus estão caindo sobre mim como neve. Estou escrevendo isto para meu amigo Carl, cujo pai é judeu. É importante compreender tudo isto. De todos os judeus, a mais adorável é Tânia, e por ela eu também ficaria judeu. Por que não? Já falo como um judeu. E sou feio como um judeu. Além disso, quem odeia os judeus mais do que o judeu?
Hora do crepúsculo. Azul indiano, água de vidro, árvores reluzentes e liquescentes. Os trilhos desaparecem no canal em Jaurés. A comprida lagarta com os lados esmaltados mergulha qual montanha russa. Não é Paris. Não é Coney Island. É uma mistura crepuscular de todas as cidades da Europa e América Central. Os pátios ferroviários por baixo de mim, os trilhos pretos e trançados, não ordenados pelo engenheiro, mas de desenho cataclísmico, como aquelas sombrias fendas no gelo polar que a câmera regista em tons de preto. Comida é uma das coisas de que gosto tremendamente. E nesta bela Villa Borghese raramente há indícios de comida. É positivamente pavoroso às vezes. Repetidamente pedi a Bóris que encomendasse pão para o pequeno-almoço, mas ele sempre se esquece. Parece que faz seu pequeno-almoço fora. E quando volta está pautando os dentes e há um pouco de ovo pendurado no seu cavanhaque. Come no restaurante, por consideração a mim. Diz que lhe dói comer uma grande refeição enquanto olho.
Gosto de Van Norden, mas não partilho de sua opinião a respeito de si próprio. Não concordo, por exemplo, em que ele seja filósofo ou pensador. É obcecado por fêmeas, nada mais. E nunca será um escritor. Sylvester também jamais será um escritor, embora seu nome cintile em lâmpadas vermelhas de 50.000 velas. Os únicos escritores ao meu redor pelos quais tenho algum respeito, actualmente, são Carl e Bóris. São possessos. Brilham por dentro com uma chama branca. Estão mortos e surdos aos tons musicais. São sofredores. Por outro lado, Moldorf, que também sofre à sua maneira, não é louco. Tem a embriaguez da palavra. Não tem veias ou vasos sanguíneos, nem coração ou rins. É um armário portátil com inúmeras gavetas e nas gavetas há etiquetas escritas com tinta branca, marrom, vermelha, azul, escarlate, cor de açafrão, cor de malva, castanho-avermelhado, damasco, turquesa, ónix, Anjou, arenque, Corona, verdigris, gorgonzola... Mudei a máquina de escrever para o aposento ao lado onde posso ver-me no espelho enquanto escrevo». In Henry Miller, Trópico de Câncer, 1934, Editorial Presença, 2008, ISBN 978-972-234-012-0.

Cortesia de EPresença/JDACT