2 de Outubro de 1916
«A
imperatriz da Rússia levantou-se da sua vigília à cabeceira da cama quando a
porta se abriu. Era a primeira vez, desde há algumas horas, que o seu olhar se
desviava da pobre criança deitada. O seu amigo entrou, apressado, no quarto e
ela irrompeu em lágrimas. Até que enfim, padre Grigori. Graças a Deus. O Alexei
precisa urgentemente de vós. Rasputin
precipitou-se para junto da cama e fez o sinal da Cruz. A camisa azul de seda e
as calças de veludo tresandavam a bebida, o que atenuava o seu habitual mau
cheiro, que as damas da corte descreviam como sendo igual ao de um bode. Porém,
Alexandra nunca se importara com quaisquer odores, nem com os do padre Grigori.
Horas antes ordenara aos guardas que o procurassem, ciente das histórias que o
reputavam como amigo dos ciganos que viviam nos arredores da capital. Muitas
eram as vezes em que passava lá a noite, entre bebida e prostitutas. Um dos
guardas do palácio chegara a relatar que o estimado padre se passeara por cima das
mesas, com as calças caídas, exibindo o seu generoso órgão, que provocava delícias
nas senhoras da corte imperial. Alexandra recusava-se a acreditar nessas histórias
e, prontamente, ordenara que o guarda fosse transferido para um outro posto longe
da capital. Ando à vossa procura desde as primeiras horas do dia, disse ela, tentando
chamar-lhe a atenção. Mas a preocupação de Rasputin centrava-se no rapaz.
Ajoelhou-se junto à cama. Alexei estava desmaiado há quase uma hora. Caíra no
jardim ao fim da tarde, enquanto brincava. Em duas horas as dores haviam recomeçado.
Alexandra observava enquanto Rasputin
puxava o cobertor para trás e examinava a perna direita do rapaz, encolhida
contra o peito, grotesca de tão inchada e negra. O sangue pulsava descontroladamente
sob a pele e o hematoma tinha agora o tamanho de uma pequena bola. A face lúgubre
do filho não exibia qualquer cor, com excepção das duas profundas olheiras. Alexandra
afagou gentilmente o cabelo
castanho-claro da criança.
Graças a Deus os gritos haviam parado.
Os espasmos chegavam de quinze em quinze minutos com uma regularidade mórbida.
A febre alta já o deixara delirante, mas ele continuava num gemido constante de
partir o coração. Num momento de lucidez o rapaz implorara a Deus que tivesse
piedade dele e pediu à mãe que o ajudasse. Depois perguntou-lhe: se eu morrer,
deixo de sentir dores? Alexandra não teve coragem de lhe responder. O que
fizera ela? Tudo aquilo era culpa sua. Era sobejamente conhecido que as
mulheres transmitiam a hemofilia, não sendo no entanto afectadas. O seu tio, o
irmão e os sobrinhos haviam todos morrido por causa disso. Mas ela nunca
acreditara que fosse portadora da doença. As quatro filhas em nada a fizeram pensar.
Só quando o ansiado filho varão nascera, doze anos antes, descobrira a dura
realidade. Antes disso, nenhum médico a alertara sequer para essa
possibilidade. E alguma vez ela perguntara? Ninguém parecia disposto a revelar
fosse o que fosse e, a maioria das vezes, até as perguntas directas eram
evitadas com respostas absurdas. Essa era a razão porque o padre Grigori era tão
especial. Os starets, velhos padres profetas, nunca escondiam nada. Rasputin
fechou os olhos e aninhou-se junto ao rapaz. Migalhas de comida seca povoavam a
sua áspera barba. A cruz de ouro que ela lhe oferecera pendia-lhe do pescoço e ele
apertou-a com força. O quarto estava iluminado apenas por velas. Alexandra
escutava-o murmurar algo, mas não entendia o que ele dizia e não se atrevia a
perguntar. Embora fosse a imperatriz da Rússia, a czarina nunca afrontava o
padre Grigori. Apenas ele tinha o poder de estancar a hemorragia. Através dele,
Deus protegia o seu precioso Alexei. O filho do czar. O único herdeiro do trono.
O próximo czar da Rússia. Contudo, isso apenas aconteceria se ele sobrevivesse.
O rapaz abriu os olhos. Não tenhas medo, Alexei, está tudo bem, sussurrou Rasputin.
A sua voz era calma e melodiosa, mas determinada. Apalpou o corpo suado de
Alexei da cabeça aos pés. Afastei as dores terríveis que sentias. Nada mais te
fará mal. Amanhã vais sentir-te bem e voltaremos a brincar juntos. Rasputin continuou
a acariciar-lhe o corpo. Lembra-te do que te disse sobre a Sibéria. É uma terra
de florestas e estepes imensas, tão vastas que ninguém sabe onde terminam. Tudo
isso pertence ao teu pai e à tua mãe e, um dia, quando fores grande, forte e
saudável, será teu. Apertou a mão do rapaz na sua. Um dia levar-te-ei à Sibéria
para que vejas tudo isso. As pessoas de lá são muito diferentes das daqui. A majestade
de tudo aquilo, Alexei, é algo que tens de ver. A sua voz continuava calma». In Steve
Berry, A Profecia Romanov, Edições Dom
Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-921-6.
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