Saulo
«(…) A porta lateral da igreja
abriu-se com um estrondo, e meu pai saiu correndo. Olhou de relance para os
fundos da edificação; a parede do rochedo fechava a parte de trás, sem qualquer
caminho visível. Ele virou e correu ao longo da lateral da igreja em direcção à
frente desta. Imediatamente, pressenti o perigo. Levantei-me. A porta da igreja
abriu-se novamente, e o jovem nobre que acompanhara a moça apareceu, seguido
pela própria moça, bem mais atrás, as barras das saias apertadas nas mãos,
correndo. O jovem perseguia meu pai, gritando loucamente. Assassino! Ladrão!
Criminoso! Havia pouca gente por ali, mas quem estava na praça parou para
olhar. Fiz um aceno com a mão. Achei que meu pai me tinha visto, mas ele se
afastou com uma guinada para a direita, na direcção de uma escada que descia
para o mar. Meu coração batia forte no peito. Não! Aquele caminho levava à
praia, e a água barraria seu caminho. No primeiro degrau, o jovem o alcançou e
arremeteu com sua adaga. Ramón!, gritou a moça. Tenha cuidado! Meu pai não
carregava arma alguma. Empurrou o homem chamado Ramón e o derrubou. Mas, ao
fazer isso, ele mesmo caiu para trás e rolou pela escada. Juntamente aos outros
espectadores, corri adiante para ver o que estava acontecendo. Abaixo de nós,
meu pai, com dificuldade, se punha de pé. Mais alguns segundos e ele teria
escapado; poderia ter encontrado outra passagem ou caminho pelo rochedo para
fugir. Mas então um grupo de soldados surgiu marchando pelo quebra-mar. Do topo
da escada, Ramón, seu perseguidor, gritou para o tenente no comando: prenda
esse homem! Ele acabou de atacar uma moça no interior da igreja e tentou matar-me!
Os soldados avançaram atrás do meu pai, agarraram-no e, com muitos socos e
pontapés, levaram-no escada acima para enfrentar Ramón. Levem-no ao pai desta
moça! O rosto do jovem nobre estava contorcido de raiva. Ele se chama Dom
Vicente Alonso Carbazón e é o magistrado local!
E, assim, meu pai foi arrastado
pelas ruas até à casa do magistrado e lançado ao chão de sua propriedade. Corri
atrás deles, incapaz de pensar claramente sobre o que estava acontecendo, tão
depressa estavam se desenrolando esses terríveis acontecimentos. No caminho,
mais gente se reuniu atrás dos soldados para assistir ao espectáculo. Todos
agora se aglomeravam diante do portão aberto. A moça abraçou o pai ao chegar à
porta de casa. Ela fez menção de erguer o véu, mas ele segurou sua mão. Ele
estava sem o casaco; e a gola da camisa, aberta. O cabelo estava desgrenhado, e
seu corpo tremia enquanto falava. Que barulho é esse, exigiu raivosamente, que me
perturba no momento em que mais preciso de paz? Ergueu a mão. Silêncio, rugiu.
Então apontou para o jovem nobre. Você, Ramón Salazar, diga-me o que está
acontecendo aqui. Senhor, Dom Vicente..., este mendigo atacou sua filha na
igreja do modo mais cruel. E, quando fui impedi-lo, ele tentou matar-me. Dom
Vicente deu um passo adiante e agrediu meu pai com um soco no rosto. Meu pai
caiu no chão, cuspindo dentes e sangue na terra vermelha do pátio. Senhor, meu
pai tentou falar, o mais nobre Dom... Dom Vicente desferiu um pontapé na sua
cabeça. Silêncio, seu vira-lata, vociferou. Se não tivesse assuntos mais
urgentes a tratar, eu o julgaria aqui mesmo e faria cumprir imediatamente a sua
sentença. Estamos em estado de guerra, lembrou o tenente que comandava os
soldados. A rainha Isabel de Castela e seu marido, o rei Fernando de Aragão,
têm afirmado que não tolerarão qualquer agitação civil enquanto lutam para
reunificar todas as nossas províncias para que a Espanha se torne um país
novamente. Um magistrado do município pode mandar que um traidor seja executado
por um oficial militar sem um julgamento formal. E quem ofende, numa igreja, um
homem ou uma mulher da nobreza deve ser condenado por traição. Apontou para uma
árvore próxima.
Podemos enforcá-lo agora mesmo e
encerrar aqui esse assunto. Faça isso, ordenou Dom Vicente. Deu meia-volta e se
preparou para entrar na sua casa. E livre-se dessa plebe no meu portão. Pai!,
gritei, quando os soldados começaram a fechar as pesadas portas de madeira da
propriedade. Tentei forçar a entrada, mas eles fizeram que todos recuassem
agredindo-nos violentamente com a lateral da espada. Soquei a superfície de
madeira; esta não cedeu. Quando ouvi o trinco ser fechado, corri em volta do
muro até encontrar um local onde houvesse um apoio para o pé. Recuei alguns
passos, então me lancei contra essa parte do muro e o escalei com unhas e pés
até alcançar o topo. Agora conseguia ver o pátio em baixo. Um cavalariço dos
estábulos recebera ordem de apanhar uma corda, e esta foi arremessada por cima
da parte superior de uma frondosa árvore. A boca do meu pai estava escancarada
de terror e incredulidade. Sangue escorria dos seus lábios. Papá! A moça puxou
a manga da roupa do pai. Seu papá, o magistrado, livrou-se dela com um empurrão.
Vá para dentro, mandou. Você desgraçou nossa família. Papá, choramingou a moça,
angustiada. Ouça-me. Esse homem não merece morrer. Mas era tarde demais». In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record,
2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.
Cortesia de GRecord/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,