Da Cultura à Literatura. Pontos de Encontro, séculos XIII a XVII
«Num
tempo de saudável rotação e de descrédito de velhos travões no andamento dos
estudos literários, em que, com o assentimento dos críticos e a atenção
interessada de muitos investigadores, justamente crescem e se celebram, entre
nós, os trabalhos sobre Literatura oral e tradicional e, em especial, sobre o
Romanceiro ibérico, não deixa talvez de ser prudente avisar à partida o
descuidado leitor deste escrito daquilo que nele por certo não encontrará. Ou
seja, preveni-lo honestamente de que o envolvimento com os velhos relatos
lírico-dramáticos não avaliza, neste caso, um entendido na sedutora rede de definições,
normas de estrutura ou de discurso, rotas antigas e actuais do romance
peninsular; recomenda apenas, e muito mais modestamente, outro leitor, agradado
do teatro peninsular dos séculos XVI e XVII, com certa prática e muito
comprazimento no ajustar dos textos espanhóis e portugueses, não raro com
antepassados comuns, que recuam, por sinal, até ao Romanceiro luso-espanhol. Aliás,
a travessia pelos romances dos dramaturgos ibéricos, particularmente dos da
vizinha Espanha, foi tão larga que valeria bem a pena levar mais longe o que já
está feito no sentido de separar trigo e joio nessa vasta seara das letras.
Temos, de resto, pioneiros que clamam por continuadores: Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, por exemplo, avançou oportunamente um rol bastante significativo
de embrechamentos e aproximações. Na esperança de estudo alheio de maior
fôlego, vão entretanto os afeiçoados, a esta temática dos cruzamentos e
contaminações entre romance e teatro, diversificando as achegas em áreas
parciais, em busca da possível concertação final.
Foi a dentro destes parâmetros
que me aventurei a acudir de perto, e a título mais apelativo que metodologicamente
rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que,
nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia, conta
a morte de Valdovinos por Carloto, filho de Carlos Magno, e a vingança
reclamada pelo marquês de Mântua, seu tio, e prontamente satisfeita pelo
próprio imperador. A recapitulação das destemidas proezas, onde a lembrança e a
invenção se confundem, ficará condicionada aos ensinamentos, aliás, nem sempre
coincidentes, de umas quantas obras literárias vindas a público entre os
séculos XV e XVII:
1.° um grupo de romances jogralescos que facilmente podem caracterizar-se como adaptações peninsulares de troços da gesta francesa;
2.° o auto do dramaturgo
quinhentista português Baltasar Dias, intitulado Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno;
3.° a Tragicomedia Famosa de El Marqués de Mantua, da autoria do universalmente
reputado poeta dramático espanhol Lope de Vega Carpio.
Sobre estes textos se encadearão, a par de algumas informações desgarradas, que rapidamente lhes esbocem o perfil, os resultados de uma leitura prioritariamente destinada a avaliar em que medida se conciliam ou separam, ao reaverem um comum quinhão de figuras e sucessos. A tragicomédia de Lope de Vega, porém, de feitura dramática mais habilidosa e amadurecida e de meditado alcance ideológico, será motivo para um levantamento um tanto mais ambicioso de intenções e procedimentos estéticos.
Os Romances Carolíngios
Comecemos então pelos romances,
adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que são parte, e
sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São,
dissemo-lo atrás, romances protagonizados pelo marquês de Mântua, por
Valdovinos e por Carloto.
No
primeiro volume do Romancero
General, Agustín Durán reúne sete sobre ligações e brigas entre tão
afamadas personagens (números 355 a 361), mas são os três primeiros que nos
importa pesquisar, porquanto foi sem dúvida neles que aprenderam o melhor da
lição Baltasar Dias e Lope de Vega, apesar de não faltarem razões para se
admitir que os restantes não eram desconhecidos de nenhum dos dramaturgos. Lope
de Vega sobretudo deve ter tido também em mente o romance 358, o do anúncio da
conversão da infanta moura Sevilha, por amor do cristão Valdovinos; dos outros,
que interpretam os gestos desesperados da morica, ao saber da morte do amado, entoam o seu pranto ou
enfatizam o seu apelo ao rei, talvez que a memória lhe tenha guardado alguns pormenores
mais impressivos, mas é difícil precisar até que ponto os relembrou, nas
tarefas da dramatização» In Maria Idalina Resina Rodrigues, Estudos
Ibéricos, Da Cultura à Literatura. Pontos de Encontro, séculos XIII a XVII,
Ministério da Educação, 1987, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987,
Depósito Legal nº 17291.
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JDACT, Maria Idalina Rodrigues, Cultura e Conhecimento, Caso de Estudo, Literatura,