«(…) Pela
sua genial intuição teve Garrett a compreensão deste carácter resistente e sofredor
da nossa raça lusitana: os Portugueses são naturalmente sofredores e pacientes:
muito arrochada há de ser a corda com que de mãos e pés os atam seus
opressores, antes que rompam num só gemido os desgraçados. Um murmúrio, uma queixa..., nem talvez no cadafalso a
soltarão! Vendem-nos os desleais pegureiros de quem nos deixamos governar;
vendem-nos, enxotam-nos para a feira a cajado e a latido e mordedela dos seus mastins;
e nós vamos e nem gememos. Se um clamor de queixumes, se uma voz de
desconfiança acaso surde, aqui os clamores de rebeldes, os alcunhas de
demagogos..., e a
nação (o rebanho, direi antes) que se resigna e sofre, e continua a caminhar
para o exício! Tal é, com as diferenças de variados nomes e datas, a história
de Portugal quase desde que a revolução ou restauração (restauração seria?) de
1640 fez da nação portuguesa o património de meia dúzia de famílias
privilegiadas e dos seus satélites e parasitos. Simbolizamos esta resistência,
vivificando o tipo de Viriato, reconstruindo poeticamente as situações lacónicas
referidas nos historiadores clássicos; representamos artisticamente essa fibra
que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a marcha da Civilização se
afirma através dos cataclismos políticos a Alma Portuguesa. Assuetum malo Ligurem, disse
Virgílio (Geórgicas, II) dessa poderosa raça,
de que o Lusitano foi um dos ramos mais activos; as terríveis desgraças que nos
têm acompanhado desde a romanização da península até à subserviência inglesa,
como acostumados ao mal, não nos têm alquebrado: não apagaram a constituição da
Nacionalidade, não embaraçaram as iniciativas dos Descobrimentos marítimos; não
abafaram a expressão das altas capacidades estéticas. Pela expressão
artística se fixou a língua portuguesa, órgão reconhecido da nacionalidade,
cujo sentimento se manteve pela idealização poética, em Camões. Seja ainda esse
recurso poético o meio de acordar a consciência do passado de um Povo, no qual estão
implícitos a sua razão de ser presente, e o ideal do seu destino futuro. Um dos
fins da Arte moderna é a representação da vida dos povos e dos aspectos da
natureza dos países longínquos, e também a evocação das idades passadas,
vencendo por este exotismo o apagamento das impressões de tudo quanto nos
cerca; assim se inicia a fase estética construtiva. Pela evocação da Raça
penetra-se o sentir da fibra nacional, e por esta o drama das lutas das Instituições que se
fundaram, o vínculo das Tradições,
que foram germes e impulsos da missão histórica e das criações artísticas que
reflectiram a consciência da colectividade». In Teófilo Braga
No ano de DCIII da era da fundação da Cidade de Roma, sendo Cônsules L. Licínio Lúculo e A. Postúmio Albino, acontecimento inopinado suscitou nos espíritos um extraordinário alvoroço: O Senado fora convocado repentinamente, com urgência, sem ser pela fórmula usual de um Edito, mas pela peremptória chamada nominal ordenada pelo velho e integérrimo Catão, denominado o Censor. A gravidade do acontecimento forçara por certo o venerando presidente do Senado a simplificar essa fórmula da convocação? Algum grande crime perturbava ou ameaçava o governo da República! A curiosidade era imensa, e antecipadamente sabia-se que a voz austera de Marco Catão, o Censor, se ergueria no Senado contra o patrício o mais opulento dos romanos, que dispunha de riquezas bastantes para corromperem os juízes aos quais se confiasse o seu julgamento. Galba!, era este o nome que soava de boca em boca, mais com inveja do que hostilidade, desde que o Tribuno do Povo Aulo Cribónio o citara para comparecer em justiça pelas depredações e carnificinas que praticara contra as Tribus e cidades tributárias da Lusitânia, que como Província senatorial estava sob a égide da lealdade romana. Era de um crime contra a majestade do Povo romano, que versava a acusação do Procônsul Sérvio Sulpício Galba, ao qual fora confiado o governo e administração da Hispânia Ulterior, essa parte ocidental da península em que se compreendia a vasta Lusitânia. Ninguém se atrevia a pôr em dúvida a valentia do tribuno militar, que fora à Hispânia com a missão especial de combater e submeter os Celtiberos; mas, sendo conhecida no mundo a glória do Senado, que, vai para quatro séculos, dirige com um tino incomparável as guerras de incorporação dos povos bárbaros, como poderá consentir que no exercício dessa missão civilizadora lhe infamem a inviolável autoridade?
A voz de Catão ergueu-se no meio
de um religioso silêncio com a acuidade de um látego de fogo:
Como velho octogenário, ninguém compreende como eu o poder dos Costumes dos Antepassados representados hoje no Senado, como um tribunal permanente, de acção executiva, e com consciência das necessidades públicas expostas pela palavra em discussão aberta. É desses Costumes dos Antepassados que deriva a Soberania com que nós todos aqui presentes, dando forma à opinião pública, intervimos no organismo social de Roma. Diante de mim, e entre os trezentos membros aqui reunidos, vejo ainda os antigos chefes da Família romana, os Patres, que pela idade foram os Seniores, os quais deram o nome a este Tribunal sacrossanto de Senado; também vejo os Concripti, que a pouco e pouco foram chamados a completarem o número, que a morte ou a extinção das famílias ia diminuindo. Enfim, aqui estamos constituídos tanto a Ordem senatorial como a Equestre, para deliberarmos sobre o que interessa à República. Dentro de vós, uns exercem um poder temporário, e outros são inamovíveis desde que se reconheceram os seus serviços, e pela sua vida incorruptível são proclamados Censores. É pois no exercício desta dignidade que eu falo e conto ser ouvido, porque foi confiada à protecção da minha vigilância essa ubérrima província da Hispânia. Tendo eu, como Censor, cooperado sempre, todos os cinco anos, pela confecção do registo do Censo, na nomeação dos Senadores tirados dos antigos magistrados, raro será aqui o Senador que não deva à minha confiança a honra dessa escolha confiada a Senadores consulares, a Senadores pretorianos, segundo as magistraturas, e cargos curuis, em que se dignificaram. E tendo eu exercido este direito supremo dos Censores, compete-nos mais um, que é o da exclusão dos indignos do Senado...»
In Teófilo Braga, (1843-1924), Viriato, 1904, Edições Zéfiro, 2009, ISBN 978-972-895-878-7.
Cortesia de EZéfiro/JDACT
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