Problemas e Conceitos
«A historiografia do Portugal Medieval debateu já amplamente os problemas
da transição 1383-1385 sob as mais diferentes perspectivas. Aquilo que aqui trazemos
pretende ser apenas um breve estudo centrado no mesmo problema de fundo, mas
analisando-o sob uma luz diferente e que nos parece ter sido até aqui ignorada:
a das
emoções. Olhando cuidadosamente para as crónicas de Fernão Lopes procuraremos
estabelecer em que medida as emoções sentidas ou provocadas pelas figuras
régias que directamente influem sobre a acção são manobradas pelo cronista com
o intuito de orientar o relato para definir o Mestre de Avis como o melhor
candidato ao trono. O nosso foco centrar-se-á sobretudo em Leonor Teles, no
Mestre de Avis e em Juan I de Castela, embora não sejam o alvo exclusivo da
nossa atenção: como é que Fernão Lopes manobra as emoções sentidas e provocadas
por estas figuras e em que medida isso contribui para o desenlace do problema
em causa? Pela sua própria natureza, as crónicas de Fernão Lopes estão
desenhadas para serem instrumentos de poder: estão enquadradas num tipo de
historiografia promovido pela Coroa, em que o objecto central do discurso é a
própria monarquia; agem como promotoras da boa imagem do rei e justificam as
suas acções. A cronista medieval portuguesa toma forma no século XV, em
estreita proximidade com o contexto político. As crónicas destinavam-se
sobretudo a ser lidas e ouvidas na corte, entre os seus oficiais e a alta
nobreza. É precisamente no papel de cronista-mor do reino que encontramos o
autor das crónicas que aqui nos ocupam, encomenda do sucessor de João I. É
natural que o seu texto procure, por todos os meios, legitimar a sucessão
invulgar do Mestre de Avis. As crónicas de Fernão Lopes acabam por ser
documentos que registam uma versão da história dessa mesma sucessão e utilizam
todos os meios para a demonstrar como legítima e benéfica.
Importa-nos definir alguns conceitos essenciais, que nos orientarão o
percurso por Fernão Lopes. O mais elementar de todos é o vocábulo emoção em si
mesmo. Não é fácil de definir e, na verdade, é inexistente na Idade Média.
Embora o termo seja mais recente, ganhou o sentido actual no final do século
XVII, consagrou-se como nome do campo em causa e é genericamente aceite assim,
conquanto se faça a ressalva necessária. Às portas da modernidade, seriam mais
frequentes conceitos como paixões, afectos ou mesmo sensibilidades, todos eles,
de qualquer forma, ligados aos processos físicos do corpo. A ligação é lógica,
uma vez que essa visão de proximidade entre corpo e alma era a mais frequente.
Não podemos esquecer que as emoções são alvo de tratados e acabam por se ver
altamente mediatizadas na viragem do século XIII. O problema de fundo a que a
própria reflexão do período que estudamos nos leva é, no entanto, outro, e um
de discussão relativamente recente na medicina e na psicologia: as emoções são
características biológicas do ser humano ou construções sociais? Sucintamente,
considera-se hoje, fundindo mais que uma teoria, que, embora tenham um fundo
biológico, são construções sociais aprendidas, pelo menos na sua forma de
expressão e adequação às circunstâncias, através dos códigos sociais em vigor.
Ainda que nos possa ser útil ter uma noção da evolução do campo historiográfico em causa, nos moldes em que se (re)fundou na década de 1980, não compete a este trabalho traçar uma revisão extensa da historiografia e dos diferentes rumos que tomou então. Um dos modelos de análise mais comum está centrado no conceito de comunidade emocional e é-nos aqui útil. Estas comunidades são grupos bem definidos e coesos: por exemplo, um mosteiro, uma confraria ou uma família. Todos podem ser estudados como comunidades sociais, no sentido em que partilham espaços, quotidianos e laços. A história das emoções procura o padrão emocional pelo qual estas se regem. Ou seja, as emoções bem e mal aceites pelo grupo e a forma como o próprio as mostra. O padrão define o que é positivo e o que pode ser perigoso, porque é perante esse tipo de circunstâncias que se expressam emoções. A comunidade emocional que aqui nos compete analisar é, portanto, a corte régia. Não somos os primeiros a tomá-la dessa perspectiva. Na cronista, as emoções funcionam muitas vezes como meio de comunicação. A forma como determinada acção ou evento são recebidos e a reacção que provocam, demonstrada depois pelo governante através das emoções, é um claro indicador, para todos os que o rodeiam, da posição a tomar. O acto é tão deliberado quanto foi, provavelmente, treinado e ponderado na sua educação. Basta recordar o quanto os espelhos de príncipes se focam na boa utilização e controlo das paixões. São estas que estão na base de todos os actos governativos porque são a causa ou revelam a eficácia da acção no discurso do período». In Inês Olaia, O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes, Revista Medievalista nº 27, Janeiro-Junho 2020, ISSN 1646-740X, http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA27/olaia2701.html
Cortesia de RMedievalista/JDACT
Inês Olaia, História, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Literatura,