Inverno de 1552-1553
«(…) Lembro-me disto!,
disse toda excitada ao meu pai, virando-me da amurada da barcaça enquanto
subíamos o Tamisa aos bordos. Lembro-me disto, pai! Lembro-me destes jardins
que desciam até ao rio, das grandes casas e do dia em que me mandaste entregar
uns livros a um lorde inglês e eu o encontrei no jardim com a princesa. Embora
o seu rosto estivesse fatigado da nossa longa jornada, ele encontrou forças
para me dirigir um sorriso. Lembras-te, filha?, disse calmamente. Fomos muito felizes
nesse Verão. Ela dizia... Calou-se. Nunca mencionávamos o nome da minha mãe,
mesmo quando estávamos sozinhos. Ao princípio, tinha sido uma precaução para
nos proteger daqueles que a tinham matado e impedir que viessem atrás de nós,
mas, agora, procurávamos refúgio tanto do pesar quanto da Inquisição (maldita); e o pesar era
um perseguidor implacável.
Vamos viver aqui?, perguntei-lhe
cheia de esperança, contemplando os belos palácios e os relvados à beira rio. Após
anos de viagem, ansiava por um novo lar. Em nenhum sítio tão imponente quanto
este, respondeu-me docemente. Temos de começar de forma modesta, Hannah. Numa pequena
loja. Temos de refazer a nossa vida. E, logo que nos instalemos, poderás deixar
de usar roupas de rapaz, voltar a vestir-te como uma rapariga e casar com o
jovem Daniel Carpenter. E poderemos então parar de fugir?, perguntei baixinho. O
meu pai hesitou. Fugíamos há tanto tempo da Inquisição (maldita) que era quase
impossível esperar que tivéssemos chegado a um porto seguro. Fugimos na mesma
noite em que a minha mãe foi acusada de ser judia, uma falsa cristã, uma
marrana, pelo tribunal eclesiástico e há muito que tínhamos partido quando ela
foi entregue ao tribunal civil a fim de ser queimada viva na fogueira. Fugimos
dela como dois Judas Iscariotes desesperados por salvar a pele, embora o meu
pai me contasse mais tarde, com lágrimas nos olhos e repetidas vezes, que nunca
a poderíamos ter salvo.
Se tivéssemos permanecido em
Aragão, também viriam buscar-nos e, então, teríamos morrido os três. Quando lhe
jurei que teria preferido morrer a viver sem ela, ele explicou-me paciente e
tristemente que eu viria a aprender que a vida era o bem mais precioso de todos
e que, um dia, compreenderia que a minha mãe teria de bom grado sacrificado a
sua vida para salvar a minha. Atravessámos clandestinamente a fronteira
portuguesa, ajudados por bandidos que levaram todo o dinheiro do meu pai e lhe
deixaram apenas os seus livros e manuscritos porque, para eles, não possuíam
nenhum valor. Apanhámos a seguir um barco para Bordéus debaixo de uma
tempestade, fazendo a travessia no convés, expostos à chuva torrencial e às
vagas, e apertando os livros mais preciosos contra o corpo como se fossem
crianças que tínhamos de manter quentes e secas.
Depois, fomos por terra até Paris
fingindo ser quem não éramos: um mercador e o seu jovem aprendiz, peregrinos a caminho
de Chartres, comerciantes itinerantes, um senhor rural e o seu pajem a viajar
por prazer, um professor e o seu pupilo que se dirigiam para a universidade de
Paris; tudo menos admitir que éramos cristãos-novos, um casal suspeito com o
cheiro a fumo dos autos-de-fé ainda impregnado na roupa e os terrores da noite
ainda agarrados ao nosso sono. Fomos ter com os primos da minha mãe em Paris e
eles enviaram-nos para Amesterdão ao cuidado de parentes que, por sua vez, nos
dirigiram para Londres. Devíamos esconder a nossa raça sob o céu inglês e
tornarmo-nos londrinos, cristãos protestantes. Acabaríamos por gostar. Eu tinha
de aprender a gostar. Os parentes, o Povo cujo nome não pode ser pronunciado,
cuja fé é oculta, o Povo condenado a vaguear banido de todos os países da
Cristandade, prosperavam em segredo tanto em Londres como em Paris ou
Amesterdão. Todos nós vivíamos como cristãos e observávamos as leis da Igreja,
os dias santos e de jejum, e os rituais. Como a minha mãe, muitos de nós acreditávamos
piamente em ambas as fés, cumpríamos o sabat às escondidas, acendíamos uma
vela, preparávamos a comida e não cumpríamos a lida da casa, de modo a
respeitar o dia santo através de fragmentos de orações judias meio esquecidas
e, depois, no dia seguinte, íamos à missa com a consciência tranquila. A minha
mãe ensinou-me a Bíblia e toda a Tora de que se lembrava como uma única lição
sagrada. Preveniu-me que as relações da nossa família e a nossa religião eram secretas,
um segredo profundo e perigoso. Tivemos de ser discretos e confiar em Deus, nas
igrejas a que tínhamos feito generosas doações e nos nossos amigos: freiras,
padres e professores que conhecíamos tão bem». In Philippa Gregory, A Espia da
Rainha, 2003, 2005, Livraria Civilização Editora, 2005, ISBN 978-972-262-360-5.
Cortesia de LCivilizaçãoE/JDACT
JDACT, Philippa Gregory, Literatura, Século XVI,