«(…) Os ladrilhos respiravam debaixo dos pés deles, testemunhas silentes de séculos de passadas que transportavam a história dos actos e dos livros, dos sussurros, das intrigas e dos ideais. Vais dizer alguma coisa?, quis saber Jacopo, ainda irritado, mas com um tom de voz mais suave. Está frio, não está? Jacopo virou-lhe a cara. Aquele sempre fora bom a desconversar. Só tirou o chapéu quando entrou pela porta que Guillermo lhe indicou. Ao fundo, junto à janela, um homem de meia-idade estava recostado na cadeira a passar o dedo pelo ecrã de um iPad. A tecnologia também marcava presença na casa de Deus. Doutor Sebastiani, cumprimentou o homem, levantando-se da cadeira assim que o viu, com um sorriso nos lábios. Bons olhos o vejam. Pousou o tablet em cima do tampo da secretária mostrando o cabeçalho do Il Messagero. Reverendo Giorgio. Não me importava nada de o ver um pouco mais tarde. Estendeu a mão para cumprimentar o prelado. Acenou com a cabeça para o tablet. Ainda acredita em boas notícias? Estou a seleccioná-las para a leitura matinal do Santo Padre. Mas nada de novo, de facto. A Europa está a ruir connosco dentro, respondeu o clérigo, bem-disposto, apesar da hora. O Santo Padre não se cansa de ler sempre a mesma lengalenga? A informação é tudo hoje em dia. Mesmo que seja sempre a mesma coisa. Apontou para uma cadeira que Jacopo, sem cerimónia, aproveitou, e contornou a secretária para retornar à sua. Guillermo ficou em pé, encostado a uma mesa de reuniões.
A que se deve a honra de ser
chamado a esta hora da madrugada?, atirou Jacopo sem aguardar que o outro se
sentasse. Pois, peço desculpa por tê-lo feito levantar-se tão cedo, doutor
Sebastiani. Pode chamar-me só doutor, atalhou o mais velho, corrosivo. Vá
directo ao assunto, por favor. Giorgio entrelaçou os dedos e exibiu uma
expressão pensativa como se estivesse a delinear uma estratégia para começar a
falar. Já ouviu falar dos irmãos Finaly?, acabou por perguntar. Jacopo anuiu
com a cabeça e franziu o sobrolho em alerta. A que propósito ele perguntara
aquilo? O que é que sabe deles?, quis certificar-se o secretário. A esta hora
da noite?, escarneceu o historiador. Giorgio sorriu com condescendência e
pousou as mãos em cima da secretária. Jacopo não conseguia perceber se ele
tinha dormido alguma coisa ou se não pregava olho desde a noite anterior.
Parecia fresco, enérgico, ainda
que os olhos estivessem raiados de vermelho e se notassem as olheiras em volta
deles. Talvez descansasse pouco, o que era apanágio do posto que ocupava. Quem servia
o Santo Padre oferecia mais do que tempo e dedicação, oferecia a vida. Jacopo
ajeitou-se na cadeira e abriu o arquivo de memórias onde, algures entre Pio
XII, Adolf Hitler, Segunda Guerra Mundial, Holocausto, nazismo e outros itens
relacionados, encontrou o registo correspondente ao dos irmãos Finaly. Era um
dossier simples com informação escassa e nunca verificada. Quer mesmo a minha
versão?, quis certificar-se. Giorgio anuiu. Prezava o doutor pela sua
frontalidade e honestidade intelectual. Queria ouvir a sua versão da história. O
que eu sei, e isto é tudo baseado em fontes sem qualquer crédito, portanto,
boatos… Não se preocupe. Continue. Eram dois irmãos judios, crianças, que foram
escondidos dos familiares depois da guerra, em França. Robert, o mais velho, e Gérald,
o mais novo. Fazem parte dos milhares de crianças judias que, supõe-se, não
foram devolvidos às famílias. Giorgio suspirou. Parecia incomodado. Mas porque
é que estavam à nossa guarda? Jacopo fitou-o perplexo. Não sabe? O alemão
voltou a suspirar e levou uma mão ao rosto. Acredite ou não, até hoje nunca
tinha ouvido falar deles. Posso ser completamente honesto consigo? Não espero
outra coisa, respondeu Jacopo com evidente franqueza. Estou completamente a
leste disto tudo.
Foi a vez de o historiador
respirar fundo. Olhou para o relógio que trazia no pulso e perdeu a última
esperança que tinha de voltar ao aconchego da cama. Já passava das cinco. Tenha
em atenção que a informação de que disponho carece de verificação. Se
pretender, posso, mais tarde, fazer uma pequena pesquisa e dar-lhe dados mais
fundamentados, repetiu a advertência. Comunicada a qualidade da informação,
Jacopo recomeçou o seu relato. A partir de 1942 ou 1943, o Papa Pio XII deu
ordens a todas as instituições religiosas que albergassem os refugiados de
guerra sem olharem à religião. Deviam ser todos vistos como seres humanos. Milhares
de pessoas foram acolhidas em mosteiros, conventos, famílias de acolhimento
católicas, e onde quer que houvesse espaço. Maioritariamente judeus?,
questionou Giorgio. Sim. No início, o Papa, especialmente em Roma, e por via
do, na altura, monsenhor Montini, conseguiu negociar com o general das SS
Reiner Stahel, que declarou a extraterritorialidade de todas as instituições
religiosas. Aqui mesmo, no Vaticano, refugiaram-se milhares de judeus e o Papa
esperava que todas as instituições, através desse acordo com Stahel, fossem
tratadas de igual forma. Aqui os nazis nunca se atreveram a entrar sem serem convidados.
Porém, os alemães, que não eram burros (?) nenhum, lembrou-se nesse momento que
estava a falar com um, começaram a fazer inspecções nos mosteiros e nos
conventos. Foi uma época muito perigosa. Resumindo, no final da guerra havia, para
além dos órfãos, muitas crianças por reclamar». In Luís
Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
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