O Guardador de Rebanhos
VI
«(…)
Pensar em Deus é
desobedecer a Deus,
Porque
Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso
se nos não mostrou...
Sejamos
simples e calmos,
Como os
regatos e as árvores,
E Deus
amar-nos-á fazendo de nós
Belos como
as árvores e os regatos,
E
dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio
aonde ir ter quando acabemos!...
VII
Da minha
aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a
minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu
sou do tamanho do que vejo
E não, do
tamanho da minha altura...
Nas
cidades a vida é mais pequena
Que aqui
na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade
as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o
horizonte,
Empurram o
nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos
pequenos
Porque nos
tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E
tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
VIII
Num
meio-dia de fim de primavera
Tive um
sonho como uma fotografia.
Vi Jesus
Cristo descer à terra.
Veio pela
encosta de um monte
Tornado
outra vez menino,
A correr e
a rolar-se pela erva
E a
arrancar flores para as deitar fora
E a rir de
modo a ouvir-se de longe.
Tinha
fugido do céu.
Era nosso
demais para fingir
De segunda
pessoa da Trindade.
No céu era
tudo falso, tudo em desacordo
Com flores
e árvores e pedras.
No céu
tinha que estar sempre sério
E de vez
em quando de se tornar outra vez homem
E subir
para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma
coroa toda à roda de espinhos
E os pés
espetados por um prego com cabeça,
E até com
um trapo à roda da cintura
Como os
pretos nas ilustrações.
Nem sequer
o deixavam ter pai e mãe
Como as
outras crianças.
O seu pai
era duas pessoas
Um velho
chamado José, que era carpinteiro,
E que não
era pai dele;
E o outro
pai era uma pomba estúpida,
A única
pomba feia do mundo
Porque não
era do mundo nem era pomba.
E a sua
mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era
mulher: era uma mala
Em que ele
tinha vindo do céu.
E queriam
que ele, que só nascera da mãe,
E nunca
tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a
bondade e a justiça!
Um dia que
Deus estava a dormir
E o
Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à
caixa dos milagres e roubou três.
Com o
primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o
segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o
terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o
pregado na cruz que há no céu
E serve de
modelo às outras.
Depois
fugiu para o sol
E desceu
pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive
na minha aldeia comigo.
É uma
criança bonita de riso e natural.
Limpa o
nariz ao braço direito,
Chapinha
nas poças de água,
Colhe as
flores e gosta delas e esquece-as.
Atira
pedras aos burros,
Rouba a
fruta dos pomares
E foge a
chorar e a gritar dos cães».
[…]
In Alberto Caeiro, Poemas Completos,
Fernando Pessoa, Editorial Presença, 2000, ISBN 978-972-232-422-9.
Cortesia de EPresença/JDACT
JDACT, Alberto Caeiro, Cultura, Poesia, Fernando Pessoa,