As Regularidades Discursivas
As unidades do
discurso
«(…) Nós próprios não estamos
seguros do uso dessas distinções no nosso mundo de discursos, e ainda mais
quando se trata de analisar conjuntos de enunciados que eram, na época de sua
formulação, distribuídos, repartidos e caracterizados de modo inteiramente diferente:
afinal, a literatura e a política são categorias recentes que só podem ser
aplicadas à cultura medieval, ou mesmo à cultura clássica, por uma hipótese
retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas;
mas nem a literatura, nem a política, nem tampouco a filosofia e as ciências
articulavam o campo do discurso nos séculos XVII ou XVIII como o articularam no
século XIX. De qualquer maneira, esses recortes, quer se trate dos que
admitimos ou dos que são contemporâneos dos discursos estudados, são sempre,
eles próprios, categorias reflexivas, princípios de classificação, regras
normativas, tipos institucionalizados: são, por sua vez, factos de discurso que
merecem ser analisados ao lado dos outros, que com eles mantêm, certamente,
relações complexas, mas que não constituem seus caracteres intrínsecos,
autóctones e universalmente reconhecíveis.
Mas, sobretudo, as unidades que é preciso deixar em suspenso são as que se impõem da maneira mais imediata: as do livro e da obra. Aparentemente, pode-se apagá-las sem um extremo artifício? Não são elas apresentadas da maneira mais exacta possível? Individualização material do livro que ocupa um espaço determinado, que tem um valor económico e que marca por si mesmo, por um certo número de signos, os limites de seu começo e de seu fim; estabelecimento de uma obra que se reconhece e que se delimita, atribuindo um certo número de textos a um autor. E, no entanto, assim que são observadas um pouco mais de perto, começam as dificuldades. Unidade material do livro? Será a mesma quando se trata de uma antologia de poemas, de uma colectânea de fragmentos póstumos, do Traité des coniques ou de um tomo da Histoire de France de Michelet? Será a mesma quando se trata de Un coup de dés, do processo de Gilles de Rais, do San Marco de Butor, ou de um missal católico? Em outros termos, a unidade material do volume não será uma unidade fraca, acessória, em relação à unidade discursiva a que ela dá apoio? Mas essa unidade discursiva, por sua vez, será homogénea e uniformemente aplicável? Um romance de Stendhal ou um romance de Dostoiévski não se individualizam como os de La comédie humaine; e estes, por sua vez, não se distinguem uns dos outros como Ulisses da Odisséia. É que as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente determinadas: além do título, das primeiras linhas e do ponto final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá autonomia, ele está preso num sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases: nó numa rede. E esse jogo de remissões não é homólogo, conforme se refira a um tratado de matemática, a um comentário de textos, a uma narração histórica, a um episódio num ciclo romanesco; em qualquer um dos casos, a unidade do livro, mesmo entendida como feixe de relações, não pode ser considerada como idêntica». In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
Cortesia de FUniversitária/JDACT
JDACT, Cultura e Conhecimento, Filosofia, Saber, Michel Foucault,