Toccata
«(…) Nesse ritmo, espero um dia
alcançar o estado de graça de Jerónimo Nadal e não influir em nada, apenas não
influir em nada. Eis que me torno livresco; é um dos meus defeitos. Para azar
da santidade, ainda não me livrei das necessidades. Ainda satisfaço minha
mulher de tempos em tempos, conscienciosamente, com pouco prazer mas tampouco
sem repulsa excessiva, a fim de garantir a paz doméstica. E, muito raramente,
em viagens de negócios, dou-me o trabalho de reatar com meus antigos hábitos;
mas, na prática, é apenas por uma questão de higiene. Tudo isso perdeu muito do
interesse para mim. O corpo de um belo adolescente e uma escultura de
Michelangelo são iguais: já não me sinto mais sem fôlego. É como depois de uma
longa doença, quando os alimentos ficam sem gosto; qual a importância, então,
de comer carne ou frango? É preciso alimentar-se, ponto final. A bem da
verdade, não existe mais muita coisa que me interesse. A literatura, pode ser, ainda
assim não estou convencido de que não seja por hábito. Talvez seja por isso que
redijo essas recordações: para chacoalhar meu sangue, ver se ainda consigo
sentir alguma coisa, se ainda sei sofrer um pouco. Exercício curioso. No
entanto, eu deveria conhecer o sofrimento. Todos os europeus da minha geração
passaram por ele, mas posso dizer sem falsa modéstia que vi mais que a maioria.
E depois as pessoas esquecem rápido, constato isso todos os dias. Mesmo aqueles
que lá estavam em geral só fazem uso, para falar disso, de pensamentos ou
frases clichês. Basta ver a prosa lamentável dos autores alemães que abordam os
combates no Leste: um sentimentalismo putrefato, uma língua morta, horrenda. A
prosa de Herr Paul Carrell, por exemplo, autor de sucesso nos últimos anos.
Acontece que conheci esse Herr Carrell, na Hungria, na época em que ainda se
chamava Paul Carl Schmidt e escrevia, sob a égide de seu ministro Von
Ribbentrop, o que pensava de verdade numa prosa vigorosa e cheia de estilo: A
questão judaica não é uma questão de humanidade, não é uma questão de religião;
é unicamente uma questão de higiene política. Agora, o honorável Herr Carrell-Schmidt
conseguiu a façanha considerável de publicar quatro volumes insípidos sobre a
guerra na União Soviética sem mencionar uma única vez a palavra judeu. Sei
disso, li: é árduo, mas sou teimoso. Nossos autores franceses, os Mabire, os
Landemer e outros do gênero, não valem mais que isso. Quanto aos comunistas, é
a mesma coisa, só que do ponto de vista oposto. Onde se meteram aqueles que
cantavam Filhos, amolem suas facas no meio-fio das calçadas? Ou estão calados,
ou mortos. Tagarela-se, careteia-se, chafurda-se numa turba insossa modelada
pelas palavras glória, honra e heroísmo, é cansativo, ninguém fala disso.
Talvez eu esteja sendo injusto, mas ouso esperar que me compreendam.
A
televisão nos entope com números, números impressionantes, uma fila de zeros;
mas quem de vós pára às vezes para pensar realmente nesses números? Quem de vós
tentou ao menos uma vez na vida contar quantas pessoas conhece ou conheceu até
hoje e comparar esse número ridículo aos números que vê na televisão, os
famosos seis milhões ou vinte milhões? Vamos à matemática. A matemática é útil,
oferece perspectivas, refresca o espírito. É um exercício às vezes muito
instrutivo. Tenham então um pouco de paciência e concedam-me a sua atenção. Vou
considerar que os dois teatros em que desempenhei um papel, ainda que ínfimo,
foram: a guerra contra a União Soviética e o programa de extermínio
oficialmente designado em nossos documentos como Solução Final da Questão
Judaica, Endlösung der Judenfrage, para citar tão belo eufemismo. No que se
refere às frentes de batalha no Ocidente, de toda forma, as perdas foram
relativamente menores. Meus números de partida serão um pouco arbitrários: não
tenho escolha, não há consenso. Para o conjunto das perdas soviéticas, opto
pelo número tradicional, citado por Khrutchev em 1956, de vinte milhões, ao
mesmo tempo observando que Reitlinger, reputado autor inglês, encontra apenas
doze, e Erickson, autor escocês tão reputado quanto, se não mais, por sua vez
atinge um total mínimo de vinte e seis milhões; os números oficiais soviéticos,
assim, cortam muito nitidamente a maçã em duas, com a diferença de um milhão.
Para as perdas alemãs, apenas na URSS, entenda-se, podemos nos basear na cifra
mais oficial e germanicamente precisa de 6.172.373 soldados perdidos no Leste
entre 22 de Junho de 1941 e 31 de Março de 1945, cifra contabilizada num relatório
interno do OKH (o Alto-Comando do Exército) encontrado depois da guerra, mas
englobando os mortos (mais de um milhão), os feridos (quase quatro milhões) e
os desaparecidos (ou seja, mortos, prisioneiros e prisioneiros mortos, cerca de
1.288.000). Digamos então, para abreviar, dois milhões de mortos, os feridos não
nos interessam aqui, incluindo os cerca de cinquenta e poucos mil mortos
suplementares entre 1º de Abril e 8 de Maio de 1945, principalmente em Berlim,
a que devemos acrescentar ainda o milhão de civis mortos estimado durante a
invasão do Leste alemão e deslocamentos subsequntes de populações, ou seja, no
total, digamos, três milhões. Quanto aos judeus, podemos escolher: a cifra
consagrada, ainda que poucas pessoas saibam sua origem, é de seis milhões (foi
Höttl quem disse a Nuremberg que Eichmann lhe dissera; mas Wisliceny, por sua
vez, afirmou que Eichmann mencionara a cifra de cinco milhões aos seus colegas;
e o próprio Eichmann, quando os judeus finalmente puderam lhe fazer a pergunta
pessoalmente, respondeu entre cinco e seis milhões, mais possivelmente cinco)».
In
Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2014,
ISBN 978-972-203-304-6.
Cortesia PdomQuixote/JDACT
Conhecimentos, II Guerra Mundial, JDACT, Jonathan Littell, Memória Viva, Mulher,