Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748
«(…)
Mas Melchor Vega superou a tortura. Ana secou os olhos com a manga da camisa.
Sim, havia sobrevivido. E um dia, quando já ninguém o esperava, reapareceu em
Triana, consumido, esfarrapado, alquebrado, destroçado, arrastando os pés, mas
com a altivez intacta. Nunca voltou a ser aquele pai que lhe remexia o cabelo
quando ela ia até ele após alguma altercação infantil. Isso era o que fazia: remexer-lhe
o cabelo para depois olhá-la com ternura recordando-lhe em silêncio quem era
ela, uma Vega, uma cigana! Era a única coisa que parecia importar no mundo. O
mesmo orgulho de raça que Melchor havia tentado inculcar à sua neta Milagros.
Pouco depois do seu regresso, quando a menina tinha apenas alguns meses de
vida, seu pai esperava que Ana concebesse um varão. Para quando o menino?,
interessava-se sempre. José, seu esposo, também perguntava com insistência: já
estás grávida? Era como se todo o Beco de San Miguel desejasse um varão. A mãe
de José, suas tias, suas primas…, até as mulheres Vegas da ciganaria! Todas a
assediavam, mas não foi possível.
Ana virou o rosto para o lugar
pelo qual José havia desaparecido depois de sua breve troca de palavras sobre Melchor.
Ao contrário de seu pai, seu esposo não havia sido capaz de sobrepor-se ao que
para ele constituía um fracasso, um escárnio, e o pouco carinho e respeito que haviam
reinado num casamento pactuado entre as duas famílias, os Vegas e os Carmonas,
foram desaparecendo até serem substituídos por um rancor latente que se
mostrava na aspereza do trato que se dispensavam. Melchor verteu todo o seu
carinho em Milagros e, uma vez resignado a não ter um varão, também o fez José.
Ana se converteu em testemunha do embate dos dois homens, sempre do lado de seu
pai, a quem amava e respeitava mais que ao esposo. Havia anoitecido, o que
estaria fazendo Melchor? O rasgado de uma guitarra a devolveu à realidade. As
suas costas, no beco, ouviu o barulho do corre-corre das pessoas, do arrastar
das cadeiras e dos bancos.
Festa!, anunciou aos gritos a voz
de um menino. Outra guitarra se juntou à primeira procurando as notas. Logo se
ouviu o repique oco de umas castanholas, e outras e outras, e até o de algum
velho crótalo de metal, preparando-se, sem ordem nem harmonia, como se pretendessem
despertar aqueles dedos que mais tarde acompanhariam danças e canções. Mais
guitarras. Uma mulher limpou a garanta; voz de velha, quebrada. Uma pandeireta.
Ana pensou no seu pai e enquanto ele gostava dos bailes. Sempre volta, tentou
convencer-se então. Por acaso não era verdade? Ele também era um Vega! Quando
saiu ao beco, os ciganos se haviam disposto em círculo ao redor de um fogo.
Vamos lá!, animou um velho
sentado numa cadeira diante da fogueira. Todos os instrumentos se calaram. Uma
só guitarra, nas mãos de um jovem de pele quase negra e colete apertado, atacou
os primeiros compassos de um fandango. O grumete a quem havia convidado a fumar
a acompanhou. Atracaram num embarcadouro de Triana, passado o porto de camaroeiros,
para descarregar umas mercadorias com destino ao arrabalde. Aqui desces tu,
negra, ordenou-lhe o capitão da tartana. O menino sorriu para Caridad. Haviam
fumado um par de vezes mais durante a travessia. Devido ao efeito do tabaco,
Caridad até havia chegado a responder com algum acanhado monossílabo a todas as
perguntas que lhe fizera o rapaz, rumores que circulavam pelo porto sobre
aquela terra distante. Cuba. Era verdadeira a riqueza de que se falava? Havia
muitos engenhos de açúcar? E escravos, eram tantos como se dizia? Algum dia
viajarei numa dessas grandes embarcações, assegurava ele, deixando voar a
imaginação. E serei o capitão! Atravessarei o oceano e conhecerei Cuba». In Ildefonso Falcones,
A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.
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