Os Visigodos
«A
raça dos Visigodos conquistadora das terras de Hispânia subjugara toda a
Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos germânicas que, dividindo
entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua
bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização
romana soubera como os Godos juntar esses fragmentos de púrpura e ouro para se
compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Hispânia quase que
os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos
Francos, que nas suas correrias assolavam as províncias visigóticas de além dos
Pirenéus, acabara com a espécie de monarquia que os Suevos tinham instituído na
Galécia e expirara em Toletum, depois de ter estabelecido leis políticas e
civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que se estendiam de
mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascónia, abrangiam grande
porção da antiga Gália Narbonense.
Desde
essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora ou goda e a romana ou
conquistada, quase desaparecera, e os homens do Norte tinham-se confundido
juridicamente com os do Meio-Dia numa só nação, para cuja grandeza contribuíra
aquela com as virtudes ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e
polícia romanas. As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos,
misturaram-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código
único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o
arianismo, que os Godos tinham abraçado o Evangelho, se declarou vencido pelo
catolicismo, a que pertencia a raça romana. Esta conversão dos vencedores à
crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dois povos. A
civilização, porém, que suavizou a rudeza dos bárbaros era uma civilização
velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos,
trouxe-lhes o pior dos males, a perversão moral. A monarquia visigótica
procurou imitar o luxo do império que morrera e que ela substituíra. Toletum
quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada
por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissolução
política por via da dissolução moral. Debalde muitos homens de génio revestidos
da autoridade suprema, tentaram evitar a ruína que viam no futuro: debalde o
clero espanhol, incomparavelmente o mais iluminado da Europa naquelas eras
tenebrosas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as
outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram ao mesmo
tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que se despenhava. A
podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela devia secar. O próprio clero
se corrompeu por fim. O vício e a degeneração corriam soltamente, rota a última
barreira.
Foi então que o célebre Roderico se apossou da
coroa. Os filhos do seu predecessor Vitiza, os jovens Sisebuto e Ebas,
disputaram-lha largo tempo; mas, segundo parece dos escassos monumentos
históricos dessa escura época, cederam por fim, não à usurpação, porque o trono
gótico não era legalmente hereditário, mas à fortuna e ousadia do ambicioso
soldado, que os deixou viver em paz na própria corte e os revestiu de
dignidades militares. Daí, se dermos crédito a antigos historiadores, lhe veio
a última ruína na batalha do rio Chrysus ou Guadalete, em que o império gótico
foi aniquilado. No meio, porém, da decadência dos Godos, algumas almas
conservaram ainda a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia. Da
civilização romana elas não tinham aceitado senão a cultura intelectual e as
sublimes teorias morais do cristianismo. As virtudes civis e, sobretudo, o amor
da pátria tinham nascido para os Godos logo que, assentando o seu domínio nas
terras de Hispânia, possuíram de pais a filhos o campo agricultado, o lar
doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso e da saudade. Nestes
corações, onde reinavam afectos ao mesmo
tempo ardentes e profundos, porque neles a índole meridional se misturava com o
carácter tenaz dos povos
do Norte, a moral evangélica revestia esses afectos de uma poesia divina, e a civilização ornava-os
de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia. Mas no fim do século sétimo
eram já bem raros aqueles em quem as tradições da cultura romana não tinham
subjugado os instintos generosos da barbaria germânica e a quem o cristianismo
fazia ainda escutar o seu verbo íntimo, esquecido no meio do luxo profano do
clero e da pompa insensata do culto exterior. Uma longa paz com as outras
nações tinha convertido a antiga energia dos Godos em alimento das dissensões
intestinas, e a guerra civil, gastando essa energia, havia posto em lugar dela
o hábito das traições covardes, das vinganças mesquinhas, dos enredos infames e
das abjecções ambiciosas.
O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas lutas dos
bandos civis, prostituído às paixões dos poderosos, esquecera completamente as
virtudes guerreiras dos seus avós. As leis de Vamba e as expressões de Ervígio
no duodécimo concílio de Toletum revelam quão fundo ia nesta parte o cancro da
degeneração moral das terras de Hispânia. No meio de tantos e tão cruéis
vexames e padecimentos, o mais custoso e aborrecido de todos eles para os
afeminados descendentes dos soldados de Teodorico, de Torismundo, de Teudes e
de Leovigildo era o
vestir as armas em defensa daquela mesma pátria que os heróis visigodos tinham
conquistado para a legarem aos seus filhos, e a maioria do povo preferia a
infâmia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos
gloriosos dos combates e à vida fadigosa da guerra». In Alexandre Herculano, Eurico o
Presbítero,
1844, Bertrand Editora, 2011, ISBN 978-972-252-299-1
Cortesia de BertrandE/JDACT
JDACT, Alexandre Herculano, História, Visigodos, Século VIII, Literatura,