«O Mágico de Auschwitz revela-nos a Shoah como nunca foi mostrada. Baseando-se em acontecimentos verídicos e em personagens reais, José Rodrigues dos Santos transporta-nos ao coração do maior dos campos da morte nazis e revela-nos episódios desconhecidos do Holocausto, incluindo o papel que o misticismo e o esoterismo desempenharam na Solução Final. Uma das mais importantes obras da literatura portuguesa contemporânea». In Resumo
«Tudo o que se passa no mundo onde vivemos é em nós que se passa. Tudo o que cessa no que vemos é em nós que cessa». Fernando Pessoa.
Prólogo
«O
som cadenciado das botas no alcatrão dava a impressão de que o mar chegara a
Praga. E que mar! As passadas pareciam ondas, tão insistentes e furiosas que se
diria fustigarem rochas. Herbert Levin decidira não ver. Recusava-se a dar
importância ao que acontecia lá fora; não aceitava aquele rumo da história.
Queria acreditar que se nada visse o mundo se manteria como sempre fora e não
aquilo em que se estava a transformar. Mas a realidade não se inclinava aos
seus desejos. Abeirou-se da janela a contragosto e do segundo andar espreitou a
rua com o despeito de um espectador contrariado. Lá em baixo, ignorando os flocos
de neve que salpicavam o ar de branco, os soldados marchavam em formação. Um rectângulo
perfeito, sete homens de um lado ao outro da rua, vinte de frente para trás, um
espaço, outro rectângulo de soldados, outro espaço, outro rectângulo de
soldados. Pernas estendidas como se não tivessem joelhos, para cima e para
baixo, a marcha compassada como um relógio, para cima e para baixo, os
movimentos sincronizados, botas para cima, botas para baixo, a neve a cair, o
branco a amontoar-se. Neve branca e corações negros. Capacetes de aço,
baionetas nas espingardas, reflexos no metal, as espingardas fixas nas costas.
Apenas as pernas e as botas se moviam, para cima e para baixo, para cima e para
baixo; não eram homens mas máquinas, rectângulos atrás de rectângulos, uma
marcha de autómatos. Não queriam saber da elegância, o que importava era a
eficácia, a imponência, a ordem. A força. Aí estava então a famosa Wehrmacht.
Eram aqueles os soldados que no ano anterior haviam ocupado a Áustria e os Sudetas.
Nesse momento marchavam sobre o que restava da terra dos checos. O exército que
aterrorizava a Europa e pusera a Inglaterra em sentido aparecera enfim, as
ameaças feitas actos, para esmagar o único estado democrático da região. O que
a Levin pareceu assustador naqueles soldados que se anunciavam como o futuro da
humanidade é que não eram homens; diziam-se a raça superior mas pareciam-lhe os
robôs de Karel Čapek, o escritor checo que morrera a tempo de ser poupado ao
funeral da sua pátria. Bertie!, chamou Gerda, que se fechara na sala da costura
para não ver. Tem cuidado. Não respondeu. Observava os soldados, hipnotizado;
dir-se-ia que se recusava a acreditar. As formações lá em baixo não tinham fim;
atrás de um rectângulo vinha sempre outro e depois outro. Era assim, havia uma
hora. A Alemanha inteira parecia marchar diante do apartamento só para lhe
mostrar, a si e à sua família, o imenso poder às ordens do senhor Hitler. Que’o
o papá! Bertie, ajuda-me aqui com o Peter! Papá! O Pete que b inca à
boua! Um lençol vermelho, com um círculo branco e a suástica no meio, foi
hasteado no prédio em frente e os soldados, como um só, estenderam os braços
direitos em saudação mas sem nunca pararem de marchar. Marchavam de braço
estendido, as pernas alongadas como os braços, botas para cima e botas para
baixo, os tacões a embaterem no asfalto sempre ao mesmo ritmo. Troavam em
uníssono como se fossem os tacões a decidir a cadência, os tacões e não os
soldados. Sentiu algo agarrar-se à sua perna esquerda e, como se despertasse de
um transe, estremeceu e olhou para baixo. Era Peter, com o ar bonacheirão das
crianças de quatro anos, que lhe puxava as calças. Papá, vamos joga à boua...
Afagou-lhe distraidamente os caracóis do cabelo. Agora não, Peter. O papá está
ocupado, não pode jogar à bola. Eu que o joga à boua! Lançou um olhar à porta da
cozinha, à procura de ajuda. Ivanka! A empregada checa veio à porta, o avental
vestido, numa mão uma faca e na outra um recipiente cheio de batatas, algumas
já descascadas. Sim, senhor Levin? Será que pode contar uma história ao Peter? Uh...,
está bem, senhor Levin. Ó Bertie, a Ivanka não pode tratar do menino, atirou Gerda
da salinha da costura. Ela está a cozinhar! O avental, a faca e o recipiente
com as batatas confirmavam o que a dona da casa acabara de dizer. Voltou-se
para o filho. Queres um biscoito? Peter arregalou os olhos. Que’o! Ó Ivanka,
leve o menino para a cozinha e dê-lhe um biscoito. A empregada pegou na criança
ao colo e levou-a. De novo à vontade, Levin regressou à janela. A multidão
agitava-se nos passeios e enchia as varandas. Havia cada vez mais gente e
viam-se mais bandeiras alemãs. Muitas pessoas reagiam aos braços estendidos dos
soldados com saudações: H… […] Dir-se-ia um exército de libertadores. Seria
possível que os checos estivessem contentes? Não podia ser. Desde que a crise
com a Alemanha rebentara, no ano anterior, a ansiedade e a consternação eram
gerais. Aquela multidão só podia ser de alemães da Checo-Eslováquia, eles que
tanto suspiravam por integrar o Reich. De olhar fixo no exército que entrava na
cidade, Levin sentia-se estupefacto com a rapidez com que tantas mudanças
radicais se haviam processado. Em 1933 ainda vivia na Alemanha. Com a subida de
Hitler ao poder, fora despedido da Bolsa de Berlim e viera para Praga. Mas a
Alemanha não parara. No ano anterior os
Acordos de Munique tinham começado a desmembrar o país dos checos e dos eslovacos
e nesse momento os alemães completavam o trabalho. Haviam cruzado a fronteira
na véspera e a rádio de Praga passara o dia a emitir de meia em meia hora
apelos à população para que mantivesse a calma. Os checos tinham mantido a
calma; tinham-na mantido a tal ponto que viam nesse momento os soldados alemães
entrar triunfantes em Praga. Tanta calma para dar naquilo. Áustria, Sudetas,
Boémia e Morávia conquistadas em menos de um ano sem que este exército
disparasse um único tiro. Era obra» In José
Rodrigues dos Santos, O Mágico de
Auschwitz, 2020, Edições Gradiva, 2020, ISBN 978-989-616-884-1.
Cortesia de EGradiva/JDACT
JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, Guerra, Nazismo, Literatura,