«(…) O homem comoveu-se: obrigado, senhora. Nessa tarde, Vicente Esteves partia para Coimbra tranquilo, saudoso e aliviado. Tranquilo por levar como companhia para defesa pessoal um grupo de cinco homens que a senhora do morgado de Pombeiro lhe arranjara; saudoso da mais bela mulher que alguma vez frequentou e que horas antes o havia levado aos céus no único momento afortunado da sua precária existência; aliviado, enfim, não só por se não ter cruzado com o execrável João Lourenço Cunha, mas também pela certeza conferida pela magia das alfaias domésticas de que a comida do excelente e farto jantar não estava envenenada. Se estivesse, ele sabia-o, os chifres de unicórnio e as pedras raras que Leonor lançou na sua presença para a bacia dos cozinhados teriam mudado de cor.
Ao contrário porém do que era
esperado, João Lourenço Cunha não haveria de chegar nesse dia a casa. Chegou,
sim, uma semana mais tarde, exausto e com novidades de Lisboa. Soubera em
Coimbra, por onde passara de regresso a Pombeiro, que el-rei Fernando I pretendia
desposar a meia-irmã, dona Beatriz, e que o caso estava já a ser discutido e
alvo de fortes censuras por parte de muitos nobres e clérigos, com maiores ou
menores ligações à corte. Sentado à lareira, de cotovelos apoiados na dobra dos
joelhos, com os braços estendidos e as mãos abertas para colherem o calor do
lume, João Lourenço confidenciou à mulher: sabes, disseram-me que sua alteza
real é muito dado aos afectos da infanta, e que é seu desesperado anseio
desposá-la. E, ao que parece, o casamento nem será difícil de levar por diante
se a Igreja lhes conceder entretanto uma dispensa canónica. Se isso vier a
acontecer, se for verdade o que todos juram, a situação em Portugal terá
tendência a complicar-se, porque não pode haver duas cabeças tão próximas uma
da outra, do mesmo tronco e do mesmo sangue numa só corte.
Leonor Teles, também ela abancada
à lareira mas a uma considerável distância do marido, de olhos pregados nas
chamas, discreta e silenciosa, ia ouvindo com pouco entusiasmo a narração de
João Lourenço, não sabendo porém se verdadeira ou fantasiosa. Se eles casarem,
prosseguiu, meneando a cabeça em sinal de receio, o país pode vir a sofrer com
o caso. E porquê, estimado esposo? Olha porquê!, exclamou ele, encolhendo os
ombros, num tom alterado. Porque o trono ficaria de rastos, e se ficasse de
rastos o reino de Castela via-se logo tentado a disputar a nossa coroa. E se
disputasse, com o país então enfraquecido, o povo viraria na mesma hora costas
ao rei para se ligar a Castela. E todos perderíamos. Como vês, é muito simples.
Se assim for, se tudo acontecer como o meu estimado esposo diz, é realmente
perigoso, comentou, sarcástica.
Passado um curto período de silêncio,
a mulher levantou-se, sacudiu a cinza acumulada sobre a roupa e recolheu aos
aposentos, deixando o marido na mesma posição, silente e apreensivo, não tanto
por uma qualquer análise pessoal aos factos descritos, dado que não tinha
talento ou imaginação para isso, mas pelo que terá ouvido em Coimbra a pessoas
com outros dados e conhecimentos. Lá se dizia e se comentava que o jovem rei dava
mais espaço à preguiça do que ao trabalho, que atribuía mais reparo aos
segredos de alcova do que aos assuntos da governação, que gostava mais de
soltar dois tiros numa caçada do que fazer ou assinar uma lei. E, também, que
por causa da sua feição galanteadora, afável, namorisqueira, se perdia com
facilidade nos encantos das donzelas que enxameavam a corte, retirando ao tempo
que estava em Lisboa a disponibilidade para outros afazeres deveras
importantes. Havia até quem afiançasse, embora com a prudência exigida à falta
de provas, que sua alteza mantinha um caso de amor e de incesto com a irmã, passando
horas aos abraços e beijos nela, pelo que no entendimento do morgado e de quem
lhe terá passado a notícia não era desajustada a secreta intenção de o rei a
desposar». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
Cortesia de OdoLivro/JDACT
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